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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

#vamostodosficarbem

A Grande Peste Negra de 1569

5 de abril de 2020
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Atualmente vivemos um momento muito peculiar da nossa história, diria mesmo único, seriamente ameaçados por uma pandemia que coloca em causa o nosso modo de vida, a organização das nossas sociedades, o modo como interagimos com o planeta. Justamente porque enfrentamos uma ameaça à escala global, aproveito esta crónica para recordar outra epidemia que assolou a Europa, com enfoque na cidade de Lisboa e seu Termo, a peste negra.

A peste negra ou peste bubónica terá sido trazida por mercadores vindos de Veneza. Existe até um antigo provérbio que diz, «Mercator, ego pestiferus», ou seja, “Sou mercador, logo portador de peste”.

Com efeito, esta epidemia terá chegado à Europa em 1346 através dos mercadores da Rota da Seda, tendo-se rapidamente espalhado por todo o continente. A doença, provocada pela bactéria Yersinia pestis, era transmitida aos humanos através de uma pulga já infetada por um rato morto, sendo o tempo de incubação entre 6 a 15 dias, e provocando, durante este período, náuseas, dores dos membros, cefaleias, vómitos, febres altas, bubões na pele. Esta epidemia causou uma elevada taxa de mortalidade, estimando-se que 70% a 90% dos doentes não sobreviviam.

Segundo os investigadores, a cidade de Lisboa sofreu vários períodos de peste ao longo da sua história, cerca de 20, sendo o mais avassalador o surto de 1569. Os dois principais surtos ficaram conhecidos precisamente como a Peste Grande de 1569 e a Peste Pequena de 1598. Todavia, Portugal já tinha enfrentado esta doença no século XIV, durante o reinado de D. Afonso IV, entre os anos de 1348 e 1352, sendo, portanto, uma doença cíclica, responsável por uma taxa de mortalidade elevadíssima, causando grande desconcerto social, económico e psicológico.

Sendo uma enfermidade contagiosa e de fácil propagação, foi nos meios urbanos que encontrou melhores condições para essa disseminação. Indubitavelmente terão contribuído para tal proliferação da doença as péssimas condições higiénicas da época, as habitações precárias, uma alimentação pobre, etc. Por sua vez, o desconhecimento que então havia sobre este tipo de doenças (a medicina era então muito rudimentar), bem como a ineficácia dos tratamentos médicos desse tempo não contribuíram, como seria de esperar, para minorar o impacto terrível e as numerosas vítimas desta grave maleita.

A Grande Peste de Lisboa terá começado em julho de 1569 e só terminou na primavera do ano seguinte. Durante estes meses estima-se que morreram cerca de 600 pessoas por dia, num total de 60 mil no final da epidemia, reduzindo a população a um terço. O número elevado de mortos implicou medidas excecionais, como o enterramento dos cadáveres em valas, e a escolha de outros locais cemiteriais para acudir a essa necessidade. Se atentarmos aos documentos da época, podemos constatar que alguns crentes eram sepultados sem os rituais funerários litúrgicos recomendados pelo Concílio de Trento, como por exemplo a missa de corpo presente.

Outra das medidas tomadas na altura, uma vez que faltavam espaços para enterrar tantas vítimas, foi a queima dos corpos, até como expediente de proteção para evitar a propagação da epidemia. A ermida de Nossa Senhora da Saúde, localizada no centro histórico da cidade de Sacavém, é um dos templos que a tradição popular associa, ainda hoje, ao surto de peste negra que assolou a região entre o verão de 1598 e a primavera de 1599, como já foi mencionado acima.

Segundo a lenda, supostamente terá sido encontrada uma imagem de Nossa Senhora quando se abria uma vala para enterramento das vítimas junto à ermida, passando aquela entidade sagrada a ser o orago do templo. Ora, uma das formas de difundir algum sentimento de conforto e de proteção nas populações eram as numerosas preces públicas e procissões que então se faziam, onde os crentes imploravam a misericórdia divina.

Mas também as próprias procissões começaram a ser proibidas, uma vez que, sendo momentos de aglomeração de pessoas, se tornavam igualmente sítios de contágio. Em tempo de horror e medo os mais frágeis e marginais são aqueles a quem muitas vezes são atribuídas as responsabilidades dos males que assolam a comunidade. Durante este período muitos cristãos-novos foram apedrejados, arrastados pelas ruas, queimados e mortos, culpados pelo que estava a acontecer.

O número de crianças abandonadas cresceu diariamente, parentes abandonaram outros parentes, mulheres foram deixadas à sua sorte…a morte, a miséria, o pânico, o isolamento, a desordem social, a devastação generalizada dominaram a cidade e os seus habitantes. Aqui, na zona do atual concelho de Loures, estamos ainda a estudar o impacto que tiveram todos estes infortúnios públicos. Preocupados com a devastação e a calamidade, os poderes públicos procuraram afrontar a situação com a adoção de medidas sanitárias, e punitivas para os infratores.

Por exemplo, D. João III teria enviado uma delegação a Veneza para se inteirar das recomendações sanitárias para combater a peste. Aquando da Grande Peste, em 1569, D. Sebastião mandou vir de Sevilha dois médicos experientes que organizaram um conjunto de medidas para serem cumpridas pelas autoridades olisiponenses, como, por exemplo, reforçar o abastecimento de víveres à cidade; acender fogueiras de lenhas aromáticas na via pública de manhã e à noite; proceder à limpeza das ruas; evitar expor ao ar o sangue obtido das seringas; proceder ao encerramento dos banhos públicos; mandar queimar as roupas de menor valor das pessoas atacadas pela doença; colocar de quarentena os navios de transporte de escravos; lançar ao mar as imundícies; contratar médicos para cuidados domiciliários; mandar enterrar os mortos em covas fundas e com uma grande camada de cal viva por cima dos corpos, etc.

Era também aconselhado não abrir as janelas antes do nascer do sol, não sair de casa, aspergir o interior das habitações com vinagre… A indicação das medidas de proteção não significou que as mesmas fossem todas implementadas e cumpridas, apesar de terem sido igualmente deliberadas punições. A desobediência às medidas de prevenção implicava uma sanção que variava de acordo com o estatuto social do infrator: açoitamento em público, seguido de degredo na Ilha de S. Tomé, durante sete anos; ao cavaleiro, escudeiro ou mercador dois anos de degredo, normalmente numa aldeia da Beira Interior.

Punição que hoje não pode deixar de nos soar a coisa estranha…

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