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Entrevistas

Eduardo Gageiro fotógrafo de Loures para o mundo

«SE NÃO TIVESSE NASCIDO EM SACAVÉM ERA UMA PESSOA COMPLETAMENTE DIFERENTE» PARTE 1

4 de junho de 2016
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Infância

Eduardo Gageiro não esconde as raízes e faz questão de honrar o local onde nasceu «tive a sorte de ter nascido em Sacavém, se não tives¬se nascido em Sacavém era uma pessoa completamente diferente». A infância foi vivida perto dos operários da Fábrica de Loiça, que frequentavam o estabelecimento do seu pai, uma Casa de Pasto, como o próprio define. As dificuldades eram muitas, muitos dos traba¬lhadores andavam descalços e era a mãe de Eduardo Gageiro que lhes aquecia as marmitas no seu forno de lenha. A visão era de miséria e não havia outra, mas aos 10 anos tudo se alterou. Já deitado ouviu muito barulho, levantou-se e foi ver o que se passava no estabe¬lecimento e eis que depara com um mundo novo, homens e mulheres bem vestidos e bonitos. Assim que o pai se apercebeu da sua presença ordenou que se fosse deitar. Mas a curiosidade manteve-se e questionou, no dia seguinte, o pai sobre quem era aque¬la gente. Eram pessoas que vinham do Casino e do Parque Mayer, que tornavam a Casa de Pasto, do seu progenitor, bipolar, com dois tipos de clientela totalmente díspares, os da hora de almoço e os da madrugada. Esta desigualda¬de chocou-o levando-o a pen¬sar «que mundo era este com uma desigualdade tão gran¬de». Estávamos em 1945.

Entretanto fez a quarta classe e pretendia continuar os estu¬dos, pois era um amante da leitura e, por conseguinte, do conhecimento. O Liceu era um objectivo mas o pai assim não anuiu, pois o futuro dele seria na Fábrica de Loiça, onde iria ser empregado de escritório. Apesar de não ser o seu desejo, não teve como contrariar o pai e aos 12 anos passava a ser paquete naquela empresa. Distribuía papéis de secção em secção e demorava muito mais que o necessário, pois perdia-se sucessivamente em conversas com outros operá¬rios e artistas.

O começo da Fotografia

Foi neste ambiente que a foto¬grafia começou a surgir, pois usava uma pequena máquina fotográfica do irmão e mostrava os resultados aos seus colegas de conversa, que achavam graça à sua vivacidade, que se traduzia também numa enorme curiosida¬de, querendo sempre saber tudo. Começou a receber alguns elo¬gios e eis que surge uma pessoa determinante no seu desenvolvi¬mento como fotógrafo, Armando Mesquita.

Depois de ver fotos suas, Armando Mesquita ordenou-lhe que passasse no seu atelier, pois precisava de aulas de arte e composição, algo do qual não percebia nada. Bem-mandado e ávido de conhecimento acedeu, começando a ter aulas. Começou a pedir máquinas fotográficas emprestadas e as películas cada vez eram melhores. Foi aí que pressionaram o seu pai para lhe comprar uma máquina em con¬dições.

Entretanto, começou a contactar com alguns jovens mais velhos, que frequentavam a universidade, alguns conotados politica¬mente, que devido à curiosidade de Eduardo Gageiro o acolheram e lhe iam oferecendo livros. Esta vontade de saber levou-o a ler centenas deles, desde os clássi¬cos portugueses e estrangeiros aos de origem ideológica. Foi um novo mundo que se abriu, com destaque para a injustiça social, que intrinsecamente lhe criou um desejo de ser jornalista, para que, desta forma, a pudesse combater e denunciar.

O jornalismo

Foi então que Mário Ventura, fiscal da Companhia das Águas, pai do amigo Ventura Henriques e vizinho da frente, organizou em sua casa um jantar com directores de jornais e redacto¬res, para o qual o convidou. Foi aí que conheceu o director do Diário Ilustrado, Jorge Sampaio Rodrigues, irmão do Urbano Rodrigues, que lhe disse para no dia seguinte aparecer na redac¬ção do Jornal e levar umas fotografias. Obviamente que foi, o que lhe causou problemas, pois o pai não estava de acordo, tendo mesmo de morar em casa de uma tia durante uns tempos.

Chegado à Redacção ficou des¬lumbrado, estando com a sua máquina pronto a trabalhar, enquanto aguardava com expec¬tativa. Eis quando surge um fotó¬grafo que lhe pergunta quem é e o que está ali a fazer, num tom agressivo. Perante os esclare¬cimentos dados, que estava ali para fazer fotografias, foi-lhe des¬tinado ir para o laboratório fazer as fotografias da pessoa em causa. Foi aí que notou que havia alguns atrasos, desde a maneira como utilizavam o flash, até à forma como revelavam as foto¬grafias que, na sua opinião, eram desinteressantes e que se resumiam a conferências de impren¬sa e à cobertura de alguns eventos. A desilusão assolou Eduardo Gageiro, que pensou em desistir e só o apoio dado pelos funcionários da parte gráfica, com quem tinha contacto, o foi man-tendo. Foi assim durante quase um ano, até que certo dia lhe ligam para se dirigir à Redacção, que ficava noutro edifício e levar a máquina fotográfica. Devido à falta de fotógrafos disponíveis, naquele momento, foi encarregue de ir fotografar o Ferreira de Castro para um suplemento literário do Diário Ilustrado, que era feito por intelectuais e profes¬sores universitários. O entusias¬mo criou-se e só pensava qual a melhor forma de obter uma boa fotografia. Por norma as fotogra¬fias destes eventos eram todas semelhantes, eram apenas ros¬tos com gestos, mas sentiu que tinha de fazer algo diferente. Foi assim que deixou correr a entre¬vista, tirando fotografias, para depois fazer algumas propostas. Aproveitou o facto de Ferreira de Castro fumar para utilizar o fumo e chegou a fotografar apenas as mãos com um manuscrito. Era uma abordagem diferente do habitual, o que levou a que surgissem elogios do Director, que assumiu o gosto por aquele tipo de visão, passando a ser o fotógrafo oficial. Este tipo de suplemento permitiu-lhe conhecer e criar amizades com as principais referências da cultura portuguesa, como escritores, pintores e escultores. Apesar da euforia nem tudo eram rosas, pois a Censura não permitia que saísse tudo o que pretendia. Mas havia mais, o ambiente com os outros fotógrafos não era o melhor, ficando para ele os trabalhos mais complicados. Esta relação criou erosão e acabou por optar sair, indo posteriormente para o Século, que ainda não era o Século Ilustrado e só o passou a ser com a chegada do Nélson de Barros, que apostou na cultura e em reportagens sobre o Povo. Numa dessas reportagens fotografou uma menina que viu na berma da estrada, estava Trás-os-Montes e parou de imediato o carro, mas como havia pouca luz, era fim de tarde e havia uma grande neblina, apenas se focou nos olhos, pois se utilizasse o flash iria estragar a fotografia. A película foi incluída na reporta¬gem sobre esta zona do País e gerou uma carta de alguém que queria saber quem era esta crian¬ça. Foi então que o redactor que o acompanhava, o Roby Amorim que era bastante hábil, fez de tudo para descobrir quem era, enviando cartas para os párocos a fim de descobrir o paradeiro. A pessoa que tinha enviado a carta foi ao encontro da menina, que vivia com mais 10 irmãos e adop¬tou-a, levando-a para Luanda, onde acabou por casar com um filho seu. São situações como esta, em que as suas fotografias influenciam positivamente a vida das pessoas fotografadas, que o sensibilizam, mais que qual¬quer prémio. Foram excelentes momentos, onde percorreu o País todo, conhecendo-o, além de ter uma liberdade artística que lhe agradava.

A PIDE

Foi aí que tudo começou quan¬do estava no Século Ilustrado, tinha uma colega fotógrafa, a Beatriz Ferreira, que colaborava com a PIDE. Não foi de estra¬nhar que certo dia, às seis da manhã, o foram buscar a casa e o levaram para a Rua António Maria Cardoso. O medo acercou-se dele, apesar de conhecer alguns dos inspectores, porque Lisboa era uma aldeia e cruzavam-se todos na Brasileira, mas o susto sustentava-se no conhecimento de casos em que depois da detenção ficavam anos em cativeiro. Tinha noção de que havia motivos para ser acusado, mas nunca tinha sido apanhado em flagrante, pois tirava as fotografias das manifestações de estudantes e das cargas policiais e mudava imediatamente de rolo, sendo apenas confiscado o rolo seguinte. Mas não sabia qual era a acusação. Estar detido foi algo que o marcou, a privação da liberdade é algo que só se sente quando se vive. Já não conseguia olhar para as grades, virando-se para a parede branca que, duran¬te bastante tempo, sempre que olhava para uma sentia o trauma de ter estado dentro de uma cela. Quando foi interrogado, o célebre inspector Mortágua, a quem anos mais tarde fotografou, era muito incisivo no interrogatório e era difícil não cair. Foi aí que soube que a acusação tinha a ver com as fotografias que enviava para o estrangeiro, que davam má imagem de Portugal. Além disso era muito premiado nos países de leste, apesar de também o ser noutras nações, com menos volume, é certo. Quando o ques¬tionavam sobre o porquê de não fotografar paisagens, que tínhamos muitas e tão belas, retorquiu que gostava de pessoas e eram elas que o inspiravam. Era o caso da mulher da Nazaré, que ganhou mais de 20 medalhas de ouro, pelo mundo fora, desde a Ásia, à América e, naturalmente na Europa, em que retratava uma senhora a puxar as redes de pesca, com idade bastante avançada, porque necessitava para sobreviver. Essa injustiça sempre o tocou. O interrogatório durou até tarde e, já de noite, veio um indivíduo, com uma máquina de barbear, que lhe entregou dizendo: «é para se barbear, não queremos que ninguém saia daqui com mau aspecto». Era o fim desta sequela. A verdade é que durante dois anos deixou de enviar fotos para o estrangei¬ro. Só passado muitos anos se dirigiu à Torre do Tombo para saber quem o denunciou e ficou surpreso. Alguns eram-lhe muito próximos e seus confidentes.

Pedro Santos Pereira

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