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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Quinta da Francelha

9 de setembro de 2019
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Esta breve crónica tem como propósito apresentar mais um conjunto patrimonial do nosso concelho, o notável exemplar de arquitetura civil conhecido como Quinta Da Francelha.

Este conjunto residencial classificado como imóvel de interesse público na década de oitenta do século passado (Decreto n.º 31/83, DR, I Série, n.º 106, de 9-05-1983), está localizado na União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, mesmo junto a uma das pistas do aeroporto da Portela. É mais uma das muitas quintas de recreio que nas proximidades de Lisboa permitiam não só à nobreza, como a comerciantes ricos, espaços de “fuga” da cidade e/ou da corte, verdadeiros oásis para os seus proprietários e convidados. Como já referi em crónicas anteriores, estas quintas de recreio além de serem propriedades destinadas à exploração agrícola, eram espaços privilegiados de lazer e gosto, com residências sumptuosas onde os jardins eram indispensáveis e parte integrante do conjunto nobre edificado.

A Casa em questão, residência principal da quinta, é composta por dois corpos distintos, apresenta uma planta em “L”, e organiza-se em dois pisos e sótão, com uma cobertura de quatro águas. A entrada de aparato faz-se pela fachada, a Este, situada ao centro do pátio-de-honra. Sabe-se que o núcleo primitivo da casa senhorial terá sido edificado ainda no século XVII. Na segunda metade do século seguinte o seu proprietário, Félix Martins da Costa, promoveu o alargamento do edifício com a integração de um novo corpo, no qual incluiu a capela, tendo dotado o piso nobre de um conjunto de salas de aparato, das quais destaco a “Sala dos Pássaros” e a “Sala Dourada”. A fachada principal do palacete apresenta um estilo neoclássico - com semelhanças com o do Palácio de Seteais (Sintra), este evidentemente muito mais magnífico - marcado pelo ritmo simétrico das janelas dos dois pisos, sendo o conjunto da fachada rematado em frontão.

Vista do exterior a residência nobre tem uma aparência equilibrada e sóbria, o que contrasta com o seu interior, onde a escadaria e as sucessivas salas do piso principal nos deslumbram pelo seu requinte decorativo. Aliás, o luxo e o refinamento dos espaços interiores funcionavam como salas de aparato como já mencionei, ou seja, espaços onde o proprietário ostentava a sua posição social elevada.

Quem era Félix Martins da Costa? Era um rico homem de negócios muito bem-sucedido, envolvido no comércio de vários produtos, entre eles o açúcar, o algodão, o arroz e os couros secos. Sabe-se que possuía também alguns navios que estabeleciam a ligação ao Brasil, nomeadamente ao porto da cidade da Baía. Na época, este porto era essencial, não só para o comércio relacionado com o Brasil, mas também porque funcionava como escala para as mercadorias asiáticas trazidas pelas naus da Carreira da Índia. Não é de estranhar que Félix Martins da Costa dotasse a sua casa de recreio de todo o esplendor inerente ao seu estatuto social e económico.

Uma das evidências desse luxo e bom gosto é a denominada “Sala dos Pássaros”, espaço surpreendente e precioso porque conserva ainda uma decoração com papel de parede pintado proveniente da China. É um dos raríssimos exemplares em Portugal onde tal se conservou; com efeito, essa conservação só se verifica em dois sítios inventariados no nosso país, o que torna esta sala um exemplar raro e patrimonialmente importante.

A “Sala dos Pássaros”, situada logo ao cimo da escadaria, constitui-se como um espaço de entrada para o resto das salas do piso nobre, algumas delas de maior dimensão. Encontra-se integralmente forrada a papel, com exceção de um pequeno lambrim com pintura em trompe l’oeil (técnica artística criadora de uma ilusão ótica de volume); esta pintura simula balaústres, por forma a criar a ilusão, para quem entra na sala, de que se encontra num balcão observando a natureza.

No mencionado conjunto de papel de parede pintado vemos o cenário de um jardim chinês idealizado, cheio de exotismo e de referências simbólicas, com movimento e harmonia. É a imagem de um sítio maravilhoso, exuberante, composto por um curso de água, rochas e vegetação, onde diferentes árvores e múltiplas flores dão abrigo tanto a insetos, como a diferentes espécies de pássaros. Entre as aves representadas figuram catatuas, papagaios, patos, faisões, corvos e pegas, todas sempre aos pares, o que simbolizava, para a cultura chinesa de então, a harmonia conjugal. O modo como estão pintadas confere ao cenário todo um dinamismo, como se tivessem nalguns casos acabado de pousar, ou pelo contrário, como se estivessem a preparar o voo… por isso se justifica plenamente o nome de “Sala dos Pássaros”. Mas o que acabo de expor não esgota a informação mais relevante sobre este valioso conjunto da Quinta da Francelha, pelo que voltarei a abordá-lo em próxima crónica.

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