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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Ainda sobre os Avieiros…

5 de novembro de 2023
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Na passada crónica abordei pela primeira vez a presença dos Avieiros no estuário do Tejo, incluindo também no rio Trancão, junto a Sacavém. Estas comunidades de pescadores, oriundas da Praia de Vieira de Leiria, começaram a chegar a esta região em meados do século XIX, especialmente durante o período de invernia em que a pesca marítima se tornava muito difícil ou mesmo impossível de realizar, atividade que era substituída pela pesca fluvial, particularmente do sável.
Por conseguinte, estes grupos foram-se instalando nesta região marcando a paisagem estuarina com os seus cais simples feitos de estacaria em madeira, os seus “barcos casa” e todo um modo de vida tão bem caraterizado no romance lírico do conhecido escritor neorrealista Alves Redol, na sua obra Avieiros. Como é do conhecimento geral, este escritor nasceu em Vila Franca de Xira e, portanto, teve um contacto muito próximo com esta realidade, conhecendo bem algumas das famílias que viviam no Tejo e que tinham uma vida precária e árdua.
No início, em meados do século XIX, tratava-se de uma migração sazonal de pescadores que terminado o Inverno retornavam à sua terra de origem para a pesca no mar. Progressivamente, algumas destas famílias foram ficando na região, passaram a residir de um modo permanente na Borda d’Água ribatejana. Pequenas comunidades de pescadores foram-se espraiando desde a Chamusca até Sacavém. Atualmente subsistem vestígios deste modo de vida na Chamusca, Alpiarça, Benfica do Ribatejo, Palhota (uma pequena aldeia praticamente só habitada por Avieiros e que se localiza no concelho do Cartaxo), Escaroupim (outra aldeia também de Avieiros, na sua grande maioria, que pertence ao concelho de Salvaterra de Magos), Vila Franca de Xira e Póvoa de Santa Iria.
Atualmente, principalmente desde os inícios do século XXI, existe uma preocupação crescente com os Avieiros. Nesse contexto, vários projetos em curso procuram identificar e compreender as características culturais que os diferenciam, pois só assim se poderá implementar uma estratégia que valorize esta cultura. O interesse manifestado por diversas entidades, nomeadamente estatais, está bem presente nas sinergias em curso para concretizar uma candidatura da Cultura Avieira a património imaterial nacional e também da Unesco. Os investigadores relevam três elementos fulcrais, pilares de uma construção secular deste grupo: o barco, a casa palafítica e a gastronomia.
O barco, ou bateira, também designado como barcos de duas bicas, é caraterizado por uma proa e popa levantadas, dando à embarcação a forma de uma pequena meia-lua. Normalmente estas baterias quando não estavam na faina da pesca fluvial podiam ser encontradas paradas nas margens junto aos salgueiros. Sendo a embarcação o centro da vida familiar e o meio essencial para a atividade piscatória, não é de estranhar que tenha representado no passado o dote mais valioso para o casamento de um casal de pescadores. Com efeito, muitas vezes, segundo relatos de antigos Avieiros, os noivos recebiam como prenda de casamento o barco com os respetivos apetrechos indispensáveis para o trabalho. Mas, toda a vida da família do pescador desenvolvia-se dentro da embarcação. Era na bateira que o casal e os filhos dormiam, cozinhavam e pescavam. Embora o espaço interior da bateria apresente três funcionalidades distintas, por vezes a circunstância de algumas famílias agregarem um número elevado de filhos, esses mesmos espaços eram “readaptados” especialmente quando chegava a noite e a hora de dormir.
Assim, uma bateira Avieira apresentava três divisões com funcionalidades distintas, como uma pequena casa. O espaço da proa funcionava não só como quarto, mas igualmente como zona onde a mulher lavava a roupa e a colocava a secar. Uma esteira de bulho ou de palha de tabua servia de colchão e um toldo era utlizado para cobrir a zona quando a família dormia ou quando chovia. A roupa da família, o dinheiro da venda do pescado e a espingarda usada para a caça eram colocadas debaixo da proa, ficando assim mais resguardadas e escondidas. O centro da embarcação era o espaço destinado ao banco de remar, mas também à cozinha com a sua panela de metal. Por sua vez, a outra extremidade da bateira era a zona destinada à pesca. Era a zona onde os Avieiros atiravam as redes ao rio, remendavam as mesmas e guardavam o resultado da pescaria. O fundo destes barcos era forrado com estrados de madeira, ou paneiros que facilitavam os movimentos dos seus ocupantes. Estes eram lavados regularmente com sabão amarelo pelas mulheres, à semelhança do soalho das casas.
A bateira é sem dúvida o elemento, o signo de representação associativa na comunidade Avieira. A ré da embarcação é o espaço do homem e da pesca, o espaço sujo; por sua vez, a proa é o espaço da mulher, a casa. Esta demarcação do espaço dentro do barco separava as tarefas e o papel de cada elemento do casal: a mulher tomava conta da casa em tarefas que iam do cozinhar à condução literal da casa, ou seja, à tarefa de remar; o homem ia preparando, lançando e recolhendo as artes.
Gradualmente estas famílias de pescadores passaram a construir, junto dos cais palafiticos, outras estruturas também elas frágeis, usando materiais orgânicos baratos e acessíveis, como caniços, juncos e madeiras. Estas pequenas estruturas serviam não só para cozinhar, mas também para armazenar alguns apetrechos associados à pesca. Naturalmente, estes modos de vida sofreram transformações que acompanham as mudanças dos tempos. Todavia, persistem ainda aldeias, com as suas casas de madeira, algumas musealizadas que podemos visitar, como a aldeia de Escaroupim, ou a aldeia da Palhota.

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