Anuncie connosco
Pub
Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A pequena estatueta romana de Bucelas

9 de julho de 2019
Partilhar

Agora que se aproxima o período das férias lembro que no nosso concelho existem muitos pontos de interesse, alguns deles já abordados nestas crónicas, que podem ser motivo de visita e fruição para todos aqueles que se interessam por história, património e cultura em geral. Aproveito para sugerir aos nossos leitores a visita aos vários museus municipais, todos eles com exposições interessantes a par de uma programação atrativa, os quais constituem, sem dúvida, locais a considerar nos dias prazenteiros de verão que se avizinham.

Em crónicas anteriores já tive a oportunidade de apresentar vários locais e vestígios que nos confirmam a presença romana na região lourense, como a villa romana de Frielas ou o mausoléu romano da Quinta da Romeira de Baixo, entre outros. O enfoque de hoje vai para uma pequena estatueta de bronze, romana, que os estudiosos datam do século II da nossa era, e que terá sido produzida possivelmente em Alexandria. Este objeto faz parte das coleções do Museu Nacional de Arqueologia e foi doado pela família de Bartolomeu Osório, antigo colecionador, que na altura em que foi depositada apenas possuía uma indicação genérica acerca da sua proveniência, Bucelas. Isto significa que a estatueta em questão não tem contexto arqueológico associado, não se sabendo, por isso, o local exato onde foi encontrada. De qualquer modo, este objeto romano não é o único vestígio já identificado em Bucelas. Relembro que junto à igreja matriz, no exterior, existem duas inscrições funerárias romanas, e que também há notícia da descoberta de um tesouro de moedas do qual se perdeu o paradeiro.

Este pequeno bronze figurativo romano representa um jovem nu, de características fisionómicas africanas, num movimento de dança rítmica, exibindo um falo desproporcional. Apesar de não se ter conservado intacta até aos nossos dias - parte dos braços e uma das pernas estão fraturados - é evidente o movimento que a escultura procura exibir. Alguns investigadores associaram as caraterísticas que a figura aparenta – cabelo fortemente encaracolado, lábios grossos, nariz achatado, falo de grande dimensão e aparente dança orgástica - ao chamado ciclo báquico, uma vez que na antiguidade clássica, nomeadamente na civilização romana, o culto a Baco era comum. Dioniso para os gregos, ou Baco para os romanos era, como todos sabemos, o deus do vinho, da embriaguez, dos excessos, mas também da fertilidade e da prosperidade. As festas em sua homenagem eram chamadas bacanais, ou seja, momentos de alguma exaltação e excesso, onde o consumo do vinho provocava estados alterados de consciência nos seus seguidores, momentos excecionais que facilitavam, segundo eles, uma melhor comunicação com a divindade.

Assim, Baco é uma divindade associada ao vinho, símbolo de vida, cujo fabrico, e em geral todos os conhecimentos relacionados com o que o ser humano retira de útil da produção da vinha, ele, Baco, aprendera durante o tempo em que andou pelo mundo. Na verdade, para conquistar a sua aceitação no Olimpo (morada dos principais deuses da mitologia greco-romana) teve que vaguear pela Terra superando várias provas, dado ser fruto da união entre um deus e uma mortal, Júpiter e Sémele. Um dos seus tutores foi o velho Sileno, com quem aprendeu precisamente o cultivo da vinha e a produção do vinho. Mas, além de Sileno, Baco aparece escoltado por outras entidades como os Sátiros, os Centauros e as Ninfas, que surgem bebendo vinho, tocando flautas, dançando e tomando parte em perseguições amorosas, numa atitude algo desbragada. Nada disto admira, dado o vinho, juntamente com o azeite e o pão, ser um elemento fundamental da alimentação tradicional mediterrânica, oposto ao consumo nórdico da cerveja.

As representações fálicas no mundo romano eram abundantes e não tinham quaisquer conotações obscenas (esse é um conceito ocidental posterior). Pelo contrário, funcionavam como símbolos protetores, possuindo uma dimensão mágica muito eficaz, nomeadamente para um mal que os romanos temiam, o do “mau olhado”. Pequenos amuletos em forma de falos eram comummente usados por crianças, homens e mulheres, como forma de proteção contra forças maléficas, e também garantia de prosperidade e vitalidade. A sua imagem, a posse de objetos com a sua representação, e até a sua figuração através de gesto de dedos da mão como a “figa”, permitia propiciar bons augúrios. Aliás, a “figa” e a meia lua como amuletos protetores ainda subsistem atualmente; até há pouco tempo era usual oferecer às crianças um conjunto de berloques onde estes elementos figuravam.

Existe, portanto, uma grande variedade de amuletos e símbolos protetores fálicos na antiguidade clássica, desde objetos de uso pessoal, a representações colocadas nas habitações ou nos sítios de comércio, na forma de esculturas, baixos relevos nas paredes de edifícios públicos e privados, frescos (são célebres os de Pompeia), mosaicos alusivos à mitologia no interior das habitações, etc. Assim, este símbolo, associado à magia e à religião, assumia um claro significado propiciatório ou apotropaico (defensivo).

Última edição

Opinião