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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A Caminho de Santiago

4 de junho de 2016
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Desde tempos imemoriais que a espécie humana caminha pela superfície da Terra, traçando infinitas linhas sobre o plane¬ta, linhas essas que se interla¬çam com os lugares, formando uma rede de significados que nos agarram a representações do espaço e do tempo, as nossas duas referências fundamentais. No mundo católico existem itine¬rários religiosos que conduzem os crentes a sítios especiais, os ditos lugares santos, com o pro¬pósito daqueles cumprirem uma determinada promessa em troca de um auxílio divino já recebido, ou para obterem uma indulgên¬cia, ou ainda, simplesmente, para conseguirem a graça divina em reconhecimento da sua demons¬tração de fé.

Na Idade Média, para os católi¬cos, existiam três lugares sagra¬dos para os quais convergiam vários percursos de peregrina¬ção: a cidade de Jerusalém, o túmulo de São Pedro em Roma e o túmulo de São Tiago, na cidade de Santiago de Compostela. Esta crónica será justamente sobre os caminhos de Santiago com particular referência a Loures, pois, por exemplo, um desses itinerários, o que ligava Lisboa a Coimbra, atravessava (e ainda existe, é claro) a cidade de Sacavém e parte da várzea. Mas, além desse itinerário prin¬cipal, havia muitos outros cami¬nhos que nele convergiam, e um deles era o que ligava Arruda dos Vinhos a Santiago dos Velhos, passando por Bucelas e por São Julião do Tojal. Não é, portan¬to, de estranhar que neste eixo de passagem secundário tives¬sem existido pequenos hospitais medievais, nomeadamente em Bucelas, São Julião do Tojal e em Sacavém, os quais se des¬tinavam a dar assistência aos peregrinos. Para reconstruir toda esta rede de caminhos os inves¬tigadores podem servir-se não só de documentos, mas também do património edificado associado a Santiago ou aos itinerários reli¬giosos, ainda existentes.

Ora, é claro que que não há um só caminho para Santiago. Pelo contrário, existem vários caminhos que no seu conjunto formam uma rede que conver¬ge para a catedral onde segun¬do a tradição está o túmulo do Apóstolo. Evidentemente, existe uma hierarquia nessa rede de trajectos que de toda a Europa levam a Santiago de Compostela. As estradas principais são aque¬las que recebem maior fluxo de caminhantes, mas para estas concorre uma miríade de estra¬das secundárias, na Península e na Europa em geral. Todas elas, principais e secundárias, constituem “O Caminho”, porque ele não é apenas uma estrutura viária, mas essencialmente algo abstrato, o gesto de caminhar em direcção ao lugar sagrado. É, pois, mais que um caminho físi¬co, essencialmente um percurso espiritual.

Por outro lado, e agora no plano da materialidade, os caminhos não foram sempre os mesmos. Com efeito, ao longo dos vários séculos, houve alterações em certos troços dos diversos tra¬jectos que fazem parte de toda esta rede. Por exemplo, a cons¬trução de uma nova ponte podia levar a um desvio; o apareci¬mento de uma nova albergaria podia incentivar também algumas derivações. O que foi garantindo a fixação dos traçados foram as várias infraestruturas de assis¬tência ao peregrino, construídas ao longo dos percursos, como os conventos e mosteiros, as igrejas, os hospitais, as alberga¬rias, muitas vezes ligadas aos Hospitalários ou às Confrarias do Espírito Santo.

Considerando a importância cul¬tural e patrimonial deste itine¬rário religioso, que remonta ao século IX, o Conselho da Europa classificou, em 1987, o Caminho de Santiago como o Primeiro Itinerário Cultural Europeu. Pouco depois, a UNESCO rea¬firmou o seu valor ao classificar como Património da Humanidade alguns troços do mesmo em Espanha e França, nos anos de 1993 e 1998, respectivamente. Ora, em Portugal, também exis¬tem percursos associados a esta secular peregrinação, o chama¬do “Caminho Português”. Um desses itinerários liga Lisboa a Coimbra, e parte do seu traçado segue a antiga estrada romana, circunstância muito comum. Este troço do percurso inicia-se na Sé Catedral de Lisboa, desce pelo bairro de Alfama, Campo de Santa Clara, Santa Apolónia, Xabregas, até atingir a zona ribeirinha e o actual Parque das Nações. Continua junto ao Tejo e pelo passeio do Sapal até che¬gar à foz do Trancão. Este tra¬jecto está assinalado pela vieira, a simbólica concha, ligada ao peregrino, porque, desde tempos mais longínquos, comprovava a sua visita a Santiago (assim como a palma atestava a visita do crente à Terra Santa).

Perto da cidade de Sacavém o percurso segue pela foz do rio Trancão, subindo até à Praça da República, e, depois de cruzar a ponte, passa a ser um cami¬nho pedestre que acompanha a margem direita do rio, seguin¬do na direcção da várzea. Mais à frente o trajecto acompanha a margem direita da ribeira de Alpriate, passa junto às ruínas da Quinta do Monteiro Mor, e, adian¬te, perto da Quinta do Brasileiro, já cerca do lugar da Granja e, portanto, dentro do concelho de Vila Franca de Xira.

Ligados ao culto de Santiago, e às peregrinações em Portugal, estão também os cultos de Santo Amaro, São Roque, São Cristóvão e São Gonçalo de Amarante, padroeiros dos cami¬nhos, dos caminhantes e das travessias de rios. Depois de formado o Reino de Portugal, os nossos monarcas demonstra¬ram uma contínua devoção pelo Apóstolo: D. Afonso II peregrino a Compostela em 1220, D. Sancho II em 1244. É por esta altura que surgem também os primeiros registos da prática da peregri-nação "por substituição" (isto é, pagava-se a alguém para ir em nome do interessado, ou então este deixava em testamento uma verba a quem fosse a Santiago em seu nome, após a morte). A Rainha Santa Isabel peregrinou a Compostela duas vezes, a pri¬meira, em 1325, após a morte de D. Dinis, tendo sido acompanha¬da de um séquito real, e a segun¬da em 1335, num registo mais modesto, procurando um certo anonimato. Outro monarca portu¬guês que fez este caminho foi D. Manuel I no ano de 1502. Enfim, embora muitos monarcas não tenham peregrinado a Santiago, contribuíram para a manutenção da tradicional peregrinação com doações a mosteiros, hospitais e albergarias, que cuidavam dos peregrinos no seu caminho.

Actualmente há um interesse crescente por este itinerário. O número de pessoas que o fazem aumenta todos os anos, e, para além dos crentes, muitos são aqueles que o fazem pelo gosto de passear, incrementando o “turismo de natureza” e o ligado às caminhadas como uma atitude de contraponto ao stress da vida urbana. Muitos são os motivos que podem levar as pessoas a repetirem esta prática ancestral. Você, também, o poderá fazer, sobretudo caso ainda não conhe¬ça a bela cidade de Santiago e sua magnífica catedral – eis talvez uma boa sugestão para as próximas férias…

Este colunista escreve em concordância com o antigo acordo ortográfico

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