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O “baixar do pano” não é um alívio!
2 de julho de 2016
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Quando no final de um espectá¬culo baixa o pano de cena, para o público, termina o espectáculo. E para quem fica dentro do palco, quando fecha a “4.ª parede”? Será alívio?
Não, não é, posso garantir-vos! Não é preciso ser-se profissional para saber o “gosto” do dever cumprido e saber que o dia seguinte não é igual a ontem, que o público não é o mesmo e que a responsabilidade laboral se mantém. Laboral sim, por¬que trabalhar em Teatro seja como Amador ou profissional, é um labor, um trabalho! Como outro qualquer! Que necessita de empenho, dedicação, trabalho, “sangue, suor e lágrimas” e tra¬balho, muito trabalho!
Tem esta pequena introdução a função de preencher umas quantas linhas, para ganhar cora¬gem para começar a escrever sobre um Amigo, um Mestre, um Colega de trabalho, para quem o pano de boca se fechou e que, para muitos que privaram com ele, nos deixou o “gosto” do dever cumprido e saudade do Homem, do Companheiro, do Abraço e do sorriso!
Escrevo-vos sobre Carlos Paniágua Fèteiro!
Tive conhecimento do seu tra¬balho e da sua pessoa aquando jovem, muito jovem e através do meu pai. Talvez com 12 ou 13 anos de idade ou um pouco mais, não consigo precisar. Meu pai era empregado bancário, pros-pector. Como tal “batia” toda a chamada zona saloia à cata de potenciais clientes para o banco em que trabalhava. Assim bas¬tantes vezes nas férias eu acom¬panhava-o a Caneças, Bucelas, passando a pente fino todas terras limítrofes e acabando ou começando invariavelmente em Loures. Foi aqui que conheci o Sr. Carlos Paniágua. Atrás do balcão da Marques Raso, Lda., empresa ligada à distribuição de gás e similares. Lembro-me bem: homem alto, magro, sempre de sorriso largo, falava com alegria. Nas visitas fui-lhe conhecendo a família. E o Teatro dos Bombeiros. Assisti a várias peças, mas uma marcou-me; nunca mais esqueci: “A Inauguração da Estátua” de Jaime Salazar Sampaio, autor que nunca deixou de o acom¬panhar e como Amigo também. Por estes tempos também eu já andava pelos Teatros e estáva¬mos em pleno PREC. Todos per¬corríamos o país nas Campanhas de Dinamização Cultural promo¬vidas pelo MFA. A Revolução e a Poesia estava na rua!
Mas afinal quem foi Carlos Paniágua, que marcou uma terra, uma época e gerações de públi¬cos, de Actores e Actrizes, de Técnicos de Teatro, enfim, de comuns cidadãos, porque sim, todos somos comuns e cida¬dãos?
Tanto como Actor e Encenador “conheceu” por dentro por fora autores como David Mourão-Ferreira, Ramada Curto, Camilo Castelo Branco, Anton Tchekhov, Ariano Suassuna, Alfonso Sastre, Eugène Ionesco, António Gedeão, Sophia de Mello Bryner Andresen, Samuel Beckett, Maurice Masterlinck, Alfredo Cortez, William Butler Yeats, Augusto Sobral, Harold Pinter, Ion Luca Caragiale, António Manuel Couto Viana, William Shakespeare, Jaime Gralheiro, Raúl Brandão, Gil Vicente, Almeida Garrett, Osvaldo Dragun, José Jorge Letria, Luiz Pacheco, Jorge Amado, Padre António Vieira, Florbela Espanca, José Régio, Fernando Pessoa, entre muitos outros…
Mas um Homem com tamanha actividade cultural já desde as Caldas da Rainha onde também profissionalmente já trabalhava na mesma área onde veio a tra¬balhar em Loures, tinha tempo para a família, para ser pai?
Falámos com Luís Paniágua, seu filho:
“O Pai Carlos Paniágua era, durante a minha infância, uma pessoa muito atenta, muito orga¬nizada, algo reservada e compro¬metida com as suas obrigações e afazeres. Também alguém que gostava de me levar a ver exposi¬ções na Gulbenkian ou levar-me ao antigo cinema Berna, a assis¬tir um filme de ficção científica como "2001 Odisseia no Espaço" quando eu tinha apenas sete anos, mas também me levou a ver o ET... E fez-me o grande favor de não dar nesse senti¬do uma educação virada para o Teatro. Fomos algumas vezes, mas não com relevância, aliás eu nem gostava muito... prefe¬ria as tardes no parque infantil do jardim de Loures ou no do Campo Grande comigo a andar de bicicleta e ele a ler, claro. Os meus pais sempre deixaram os filhos à vontade. No entanto, começando a fazer Teatro cedo - já agora, isto do Teatro começa em 86 com a pergunta dele: "Não queres aparecer por lá...?", e eu fui. Assim ele continuou a acom-panhar-me e eu a ele.”
Mas foi o Teatro que marcou toda a sua vida! Como era ele como Encenador, Actor e colega? Luís Paniágua, seu filho e ainda hoje no Teatro Independente de Loures, do qual faz parte dos Corpos Directivos, conta-nos como era:
“O Encenador Carlos Paniágua era rigoroso, assertivo, englo¬bante, coletivo e surpreendente. Aprendi que o rigor não é só saber muito bem o texto e compor o figurino, começa nos ensaios pelo respeito por quem está a trabalhar connosco, por nós pró¬prios. Assertivo, porque tudo que fazia se encaixava quase na per¬feição, o que pretendia era per¬feitamente entendível numa linha consubstanciada pelos resulta¬dos dramatúrgicos e na prática teatral levada a cabo. Embora com a distanciação e exigência que se pede a um encenador que tenha perante os atores, a forma de explicar o que pretendia era englobante, parecia abraçar as pessoas seja pela ligeireza ou peso dramático do que se imponha construir. E também por isso coletivista. O interesse do grupo em primeiro lugar. Trazia propostas que eram lidas, discu¬tidas e decididas em conjunto, de acordo com o elenco disponível. Ninguém deixou de conseguir fazer Teatro nas mãos dele. Era uma mente absolutamente criati¬va mas com método, o que era fantástico e ajudava muito a todo o processo... Como colega tive o privilégio de durante cerca de uma década fazer "uma equipa" de trabalho muito próxima com ele. Muitas vezes discutíamos as coisas ao almoço para pôr em prática à noite no ensaio. Como actor vinha ao de cima a concen-tração e disciplina indispensáveis para uma atuação de qualidade que não traísse o público. Que começa na construção do per¬sonagem. Aliás, ele aplicava em si aquilo que passava aos outros no papel de encenador. As per¬sonagens respiravam realmente no seu corpo e com isso enchia os palcos...”
Família, Teatro e Marcos Raso, Lda. E tinha ainda tempo Carlos Paniágua para a sociedade que o rodeava, os problemas do país? Regressamos ao seu filho, Luís Paniágua:
“Carlos Paniágua Fèteiro era alguém consciente da sua cida¬dania na intervenção que acha¬va necessária na sociedade. Interventivo q.b. (mas muitas vezes, bastante) o seu discurso ia sempre no sentido de servir a sociedade de uma forma escla¬recida. Gente informada é gente participativa, era esse um dos seus objetivos enquanto orga¬nizador de sessões de escla¬recimento e de colóquios nos anos setenta. Defendeu o livre arbítrio e o direito à liberdade de expressão. Não escondendo a suas opções políticas, era fre¬quentemente consensual ou ter¬rivelmente correcto para com os seus oponentes deixando pouca margem para estes contraporem de forma assertiva. A sua abran¬gência social foi para além do Teatro. Mas O Teatro foi o seu modo de intervenção principal...
Resumindo, pertence agora à memória colectiva. É património de todos nós.”
Nada mais acrescento!
Carlos Paniágua pertence agora à memória colectiva.
É património de todos nós.
Este colunista escreve em concordância com o antigo acordo ortográfico