Paisagens e Patrimónios
O Carnaval e a associação à Festa dos Tolos da Idade Média
3 de março de 2025
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Como já mencionei na crónica anterior a festa designada por Carnaval, Entrudo ou Entroito é muita antiga, desde há muito presente nas sociedades do hemisfério norte e associada a celebrações que marcam o inicio no novo ano agrícola. Gradualmente e, à medida que o cristianismo se afirma, o Carnaval passou a estar articulado com a história de Cristo, e a sua comemoração a ser determinada pelo dia da Páscoa.
Tanto o antropólogo espanhol Julio Caro Baroja, como o etnólogo francês Claude Gaignebet estudaram as festividades e as práticas rituais carnavalescas na Europa, tendo estabelecido uma conexão entre os ritos de cariz mais pagão e os cultos cristãos associados ao calendário religioso. Já na antiguidade clássica, nomeadamente na Roma Antiga, as celebrações associadas aos Saturnalia, aos Lupercadia e as Dionisias implicavam a troca de presentes, a realização de grandiosos banquetes, o uso de máscaras e a troca de papeis sociais.
Os mesmos investigadores salientam que a partir do século IV, o dia 25 de dezembro foi designado pela igreja católica como a data oficial do nascimento de Cristo, ou seja, o Natal. Deste modo, a celebração natalícia passa a estar cada vez mais associada às festas pagãs em honra do renascimento do sol. A “colagem” dos dois calendários vai agregando, progressivamente, o solstício (o momento em que o mundo começa a sair da grande noite) ao Natal.
Convém salientar que as comemorações relacionadas com o fim do inverno e a chegada da primavera abarcavam um período alargado, desde meados de dezembro até começos de março, calendário festivo que incluía o Carnaval. Deste modo, os velhos rituais pagãos foram sendo ajustados aos santos católicos de uma maneira geral, numa tentativa da igreja incluir esses ritos na sua estrutura litúrgica, agregando e disciplinando comportamentos.
Um dos exemplos que podemos encontrar na Idade Média é a Festa dos Tolos, a qual se iniciava no Natal e decorria até aos primeiros dias de janeiro. Este folguedo era organizado dentro das próprias igrejas, pelos diáconos e jovens do coro que divertiam os fiéis com brincadeiras jocosas, trocando a hierarquia habitual. Mas, este tipo de comemoração tipicamente profana, transbordava para fora do espaço religioso, decorria nas ruas permitindo o consumo desregrado de bebidas alcoólicas, danças e músicas, só aceites pela moral católica nesse dito período de transgressão.
Há um livro muito interessante, o Romance de Fauvel, poema satírico e alegórico francês escrito no inicio do século XIV (obra atribuída por alguns a Gervais du Bus) que nos elucida sobre este tipo de desregramento, como podemos aferir do pequeno excerto que transcrevo: “Padres e clérigos podem ver-se usando máscaras e aparências monstruosas nas horas do ofício. Dançam no coro vestidos de mulheres, lacaios ou menestréis. Cantam canções licenciosas. Comem chouriços pretos no altar enquanto o oficiante diz a missa. Jogam aí aos dados. Incensam com um fumo fétido procedente da sola de sapatos velhos. Correm e pulam pela igreja, sem corar da sua vergonha. Viajam finalmente pela cidade e seus teatros em miseráveis carruagens e carroças; e suscitam o riso dos seus companheiros e circunstantes através de representações infames, com trejeitos indecentes e versos torpes e libertinos”.
Saliento ainda a questão do riso como comportamento coletivo, sempre presente neste tipo de celebrações, sejam as da antiguidade clássica como as Dionísias e as Saturnais, como a Festa do Loucos da Idade Média, ou ainda o Carnaval numa época mais contemporânea.
Dois dos costumes do Carnaval que também se observam nos textos da antiguidade clássica são o disfarce e a inversão de papéis durante os dias de festa, sendo mais comum o homem se disfarçar de mulher e vice-versa. Trata-se da transposição de papéis entre o género masculino e feminino, testemunho da transgressão da ordem social, típica do Entrudo. A música, a dança e o consumo excessivo de bebidas são também outro traço comum.
Ainda na atualidade, apesar da importação de modelos vindos nomeadamente no Brasil, as “matrafonas” são uma presença importante nos vários desfiles de Carnaval, assumindo um papel marcadamente humorístico, apresentando-se como uma mulher desleixada no vestuário, que se movimenta de modo desajeitado, não escondendo algumas características masculinas como o uso da barba e bigode. Na verdade, este modo de disfarce era até há pouco tempo muito comum nas aldeias, onde os homens foliões recorriam ao vestuário da esposa ou da mãe.