Paisagens e Patrimónios
A Gruta do Correio-Mor em Loures
9 de setembro de 2024
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Como é do conhecimento geral, nos territórios onde as formações calcárias estão presentes é usual a ocorrência de grutas. Ora, no concelho de Loures existe este tipo de formações geológicas, tendo sido identificadas várias cavidades cársicas, algumas delas com vestígios de ocupação humana, como é o caso da Gruta da Lapa da Figueira (Bucelas), da Gruta de Salemas (Lousa) ou da Gruta do Correio-Mor (Loures). A crónica deste mês irá recair precisamente sobre a Gruta do Correio-Mor, descoberta acidentalmente em 1974, devido à exploração de uma pedreira de calcário, pedreira essa que acabou por ditar também a sua infeliz destruição. A gruta situava-se a 1 km W NW de Loures, grosso modo nas proximidades da CREL, logo depois do túnel de Caneças, numa zona atualmente muito alterada pela construção.
Ora, frequentemente o desaparecimento do património arqueológico está associado a expansão de atividades humanas como pedreiras, trabalhos agrícolas, grandes obras públicas como barragens e/ou estradas, ou mesmo o crescimento de zonas habitacionais. É neste contexto que surge a arqueologia de emergência, ação que visa a salvaguarda de sítios arqueológicos ameaçados de destruição, garantindo o registo da informação arqueológica, obtida através de uma escavação arqueológica. No caso da Gruta do Correio-Mor a sua descoberta suscitou interesse por parte de alguns investigadores associados aos Serviços Geológicos de Portugal, entidade que na altura desenvolvia estudos relacionados não só com a geologia, mas também no âmbito da arqueologia, uma vez que devido à sua profissão tinham um contacto mais próximo com os territórios. Aliás, o Museu Geológico de Lisboa possui nas suas coleções muitos materiais arqueológicos, alguns deles provenientes do território de Loures.
Na altura da descoberta da Gruta do Correio-Mor, apesar desta já não se encontrar intacta pelos motivos já descritos acima, foi possível executar uma intervenção arqueológica que incidiu sobre um depósito primitivo que perdurava numa zona mais próxima da presumível entrada, situada no lado sul da dita cavidade. A investigação arqueológica possibilitou a identificação de várias ocupações humanas de larga diacronia, isto é, vestígios da utilização da gruta por grupos humanos do Paleolítico até à Idade do Ferro, incluindo o Neolítico, o Calcolítico e a Idade do Bronze.
O espólio recolhido foi muito diversificado, tendo sido exumados objetos em sílex, como por exemplo lâminas, e ainda cerâmicas, placas de xisto, entre outros artefactos. Todavia, o mais notável foi o reconhecimento de um depósito bem conservado, constituído por um conjunto de 11 “ídolos” de calcário, predominantemente cilíndricos ou semicilíndricos, uns lisos, mas alguns deles decorados, depositados numa zona muito especifica da gruta, uma espécie de cavidade lateral. Tudo indica que se tratou de um depósito ritual realizado nesse espaço bem delimitado da cavidade, datável do Calcolítico (período da pré-história recente situado cronologicamente entre o Neolítico e a Idade do Bronze, correspondente, genericamente, ao 3º milénio a.C.).
Estes artefactos de calcário pertencem a uma vasta série de elementos característicos deste período no Sudoeste da Península Ibérica, conotados com crenças religiosas e ações rituais, e por isso são geralmente conhecidos na gíria arqueológica como “ídolos”. No caso dos chamados “ídolos cilíndricos”, que podem ter ou não decoração, esta é por vezes muito interessante, por representar os olhos, de onde partem linhas radiadas a lembrar a representação do sol, as sobrancelhas, o cabelo, e tatuagens faciais.
No caso presente, os ídolos semicilíndricos contêm incisões decorativas, muito estilizadas. Os ídolos cilíndricos são lisos, existe um em forma de peso de balança, um outro em forma de anel, e ainda um outro correspondente a uma placa curva. Este conjunto identificado na Gruta do Correio-Mor é notável pela sua ocorrência num espaço bem delimitado, como que a sugerir que, na sua diversidade, os ídolos estavam todos em articulação uns com os outros.
Uma das interpretações mais verosímeis é a de que estes tipos de objetos faziam parte de rituais, podendo representar divindades ou outras figuras associadas ao mundo religioso e mágico.
Os ídolos cilíndricos são muito comuns em contextos funerários e habitacionais do Sudoeste da Península Ibérica ao longo do Calcolítico. Ainda em Loures, também foram encontrados exemplares pertencentes a este universo de objetos em contexto funerário, concretamente em túmulos megalíticos, nomeadamente na Anta de Casaínhos (Lousa) e na Anta de Carcavelos (também na freguesia de Lousa), monumentos megalíticos já intervencionados.