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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens & Patrimónios

O Engenho de Papel do Mosteiro de S. Vicente de Fora

4 de abril de 2017
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A povoação de São Julião do Tojal está associada aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho do Mosteiro de São Vicente de Fora deste o início do reino de Portugal, quando D. Afonso Henriques doou a este mosteiro, em 1176, grande parte das terras do Tojal. A principal fonte de rendimento da instituição religiosa provinha, precisamente, dos domínios diretos que possuía na região de Lisboa, alguns deles localizados acima do rio de Sacavém (atual Trancão) e entre os quais se encontrava a futura Quinta da Abelheira.
Na verdade, logo após a conquista da cidade de Lisboa, o rei tratou de dotar o Mosteiro de São Vicente de Fora de “grandezas” que lhe garantissem uma certa autonomia e poder, e nesse sentido fez doação dos salgados, ribeiras de sal e terras de tojo que ficavam acima de umas “voltas” do rio de Sacavém. Caberia ao mosteiro cuidar não só de arrecadar os proveitos da exploração dessas terras, mas também de criar uma povoação que incluísse até cem vizinhos, tendo jurisdição própria, civil e criminal, para os seus moradores.
Nessa época, o rio de Sacavém, ou Trancão, como agora o designamos, era muito mais caudaloso, a várzea estava menos assoreada e os efeitos da maré chegavam até estas paragens por influência do Tejo, o que possibilitava a navegabilidade na várzea de Loures, como também a exploração de salinas.
Aquela doação foi confirmada em reinados posteriores, nomeadamente por D. Afonso II em 1218 e, mais tarde, por D. Sebastião, em 1577 (suprimindo este último o privilégio da jurisdição).
Voltando à primeira confirmação do séc. XIII, importa salientar o tipo de doação nela contida: nesse documento o rei concedeu todas as terras do Tojal com as suas águas, azenhas, moinhos e marinas, montados, “devezas”, campos, olivais, vinhas, casais e casas do lugar, o qual podia ter até 100 vizinhos, como já referido acima. Uma paisagem bem diferente da atual, portanto, com os mencionados salgados e ribeiras de sal na parte baixa alagada pelo rio, campos de tojo na zona alta do mesmo curso de água, o qual vinha dos altos de “Abuzelas”, ou, como dizemos hoje, Bucelas. Este vasto domínio direto sobre extensas terras foi subdividido durante o séc. XIII por aforamentos, ou seja, dividido em domínios úteis mediante o pagamento de uma renda ao Mosteiro.
De facto, nessa altura já havia uma figura contratual, a enfiteuse, que consistia num acordo jurídico de cedência para usufruto de uma propriedade. Esta ficava juridicamente dividida em dois tipos de domínio: o direto e o indireto. Deste modo, um proprietário, pelo contrato enfitêutico, cedia, como senhorio, o domínio útil, de fruição, isto é, o direito de outrem (foreiro ou enfiteuta) utilizar um imóvel e de nele fazer benfeitorias. Esse proprietário mantinha o chamado domínio direto, ou seja, conservava os seus direitos de propriedade do imóvel em última instância. Digamos que era uma espécie de “aluguer”, mas que podia ser de longa duração e transmitir-se de pais para filhos. Em troca dessa exploração o outorgado aceitava uma série de condições que lhe eram impostas, entre as quais a obrigação de pagar uma pensão anual ao proprietário do domínio direto, transformando-se, por isso, em foreiro do último. Não cumprindo o foreiro as condições do contrato, o domínio útil revertia novamente para o detentor do domínio direto, como aliás em qualquer aluguer moderno.
A proximidade do rio Trancão era um recurso muito importante para o cultivo das terras, mas também representava uma força motriz, correntemente utilizada para movimentar azenhas. Já no reinado de D. Afonso III há registo de que os frades receberam do rei o assento de uma das azenhas do rio Trancão, em 1251, em troca de uma herdade que possuíam na Guarda.
Todavia, o progressivo assoreamento da várzea transformou algumas das antigas marinhas de sal em praias e morraçais e como estavam aparentemente abandonadas para fins agrícolas pelos frades, o possuidor de propriedades vizinhas, por sinal o Duque de Bragança, apoderou-se delas e, lentamente, começou a explorá-las para seu interesse, a dá-las por sesmaria a outros para estes fazerem “caldeirões de moirar sal” à moda dos mouros, como se dizia. Recorde-se que o Duque de Bragança tinha herdado os bens do condestável D. Nuno Álvares Pereira, bens que integravam os lugares de Sacavém, Frielas, Unhos e Camarate.
Aquela atitude do duque relativamente à exploração de bens que estavam inicialmente integrados no Mosteiro de São Vicente originou um desacordo que se arrastou por mais de dois séculos; apesar das tentativas de demarcação do vasto domínio pertencente ao mosteiro, os frades continuavam insatisfeitos na medida em que estas delimitações, segundo eles, não punham cobro aos abusos e astúcia dos seus próprios (e numerosos) foreiros e ainda de proprietários vizinhos.
Segundo alguns investigadores terá sido depois do terramoto de 1755 que muitos frades, fugindo de Lisboa, se instalaram na propriedade da Abelheira, na qual, desde 1730, se faziam obras de melhoramento, sendo por isso o local mais apropriado para residirem. Foi nessa ocasião que começaram as obras do engenho de papel, ou seja, um dispositivo capaz de usar a força motriz da água para acionar mecanismos que permitiam uma produção, algo rudimentar aos nossos olhos de hoje, de papel. Havia poucas dessas moendas de papel no país, e os frades começaram a construir um reservatório de água, a montar o engenho, as tinas e os caixões para o trapo, o torneador, as empresas, as formas. De início apenas produziam papel pardo e de embrulho, papel esse que servia apenas para “empapelar”, uma vez que era rugoso e áspero. A produção que este engenho de papel permitia ia abastecer um armazém dos frades situado na rua da Betesga, em Lisboa, rua essa onde possuíam vários prédios urbanos, incluindo armazéns do Mosteiro em que guardavam vinho e azeite.
Com as Invasões Francesas o engenho parou, voltando a funcionar após este período conturbado. Em 1833 os frades pensaram em restaurar a fábrica de papel.
Assim, a produção de papel, grosso modo, teve dois períodos: o primeiro, até ao séc. XIX, correspondeu a uma fase artesanal, em que o fabrico era feito à mão, se preparava a pasta, se fabricava a folha, esta se secava para depois ir para a colagem e se usava um molde retangular de madeira e uma rede (no final do século XIII passou a usar-se a marca de água nalgumas fábricas, a qual funcionava como que um “bilhete de identidade” do produto).
O segundo período corresponde a um modo de produzir papel que já se pode incluir na fase industrial, que se processa a partir do séc. XX (ver minha próxima crónica).
Resta dizer que a matéria-prima utilizada em todas estas manufaturas era o trapo, especialmente o de linho e o de cânhamo, por deles resultar um papel de melhor qualidade. Todavia, e ao que tudo indica, por meados do séc. XVIII, o trapo rareou, facto que teria levado o poder régio à assinatura de um alvará datado de 19 de abril de 1749 que proibia a exportação do trapo preto e branco. Essa crise de matéria-prima terá sido ultrapassada com o advento da administração pombalina durante a qual, adentro da política do marquês, se verificou a instalação de manufaturas papeleiras pelo país, como foi também este caso da fábrica de papel da Abelheira-Tojal.

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