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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

O Círio de Nossa Senhora do Cabo

6 de novembro de 2021
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No mês de outubro o Círio de Nossa Senhora do Cabo saiu de Santo Antão do Tojal com destino a Bucelas onde foi recebido em festa, completando-se assim mais uma peregrinação anual, peregrinação que podemos integrar nas manifestações de devoção popular que ao longo dos séculos têm caraterizado esta região da Estremadura. Numa crónica anterior, em 2017, abordei a história do santuário mariano localizado no Cabo Espichel, das suas lendas e dos vários Círios associados a este local sagrado. Uma dessas peregrinações é o denominado Círio Saloio, ou também referido em vários documentos como o Círio do Termo, neste caso, o Termo da cidade de Lisboa.

O local de origem do Círio de Nossa Senhora do Cabo é o Cabo Espichel, sítio associado a várias lendas, com uma ocupação humana muito anterior ao século XV, sendo um promontório de inegável beleza entre a terra e o mar. Várias lendas associam este sítio ao aparecimento da Virgem, o que terá levado, segundo a tradição, à construção de uma pequena capela e, posteriormente, ao santuário que hoje todos conhecemos.

Sabemos que a confraria de Nossa Senhora do Cabo foi instituída no século XV, em 1432, e os seus estatutos aprovados em 1672. Terá sido esta confraria a primeira a organizar o Círio como “giro”, ou seja, a concretizar uma itinerância efetuada entre as várias freguesias, com uma ordem previamente acordada, cabendo a cada uma delas a obrigação de organizar o culto e a deslocação anual ao santuário.

Assim, as peregrinações a este santuário começaram por envolver as freguesias da Caparica, tendo-se alargado progressivamente à zona de Lisboa. Numa obra do século XIX - Memórias sobre a Antiguidade das Romarias - são referidos oito Círios relacionados com a veneração de Nossa Senhora do Cabo e respetivo santuário: Nossa Senhora do Monte da Caparica; Alcabideche – que será a primeira do Círio do Termo ou Círio Saloio; Arrentela e Seixal; Almada; Lisboa; Palmela; Azeitão e Sesimbra; e Termos das vilas de Azeitão e Sesimbra. Relativamente ao Círio Saloio ou do Termo, ele conheceu várias oscilações ao longo do tempo na sua composição, com a entrada e saída de freguesias, até se fixar em 26 freguesias.

Mas, afinal, que se entende por Círio? Trata-se de uma manifestação de religiosidade associada a uma confraria popular que ciclicamente se desloca a um santuário em cumprimento de uma promessa antiga que uma comunidade, aldeia ou povoação terá assumido em tempos remotos. Essa tradição de uma antiga promessa feita por antepassados implica uma deslocação periódica a um santuário ou o compromisso de venerar uma “imagem sagrada”. Normalmente este tipo de peregrinações anuais acontece entre julho e outubro, o que significa que fazem parte de um conjunto de festividades religiosas de verão, relacionadas com o ciclo agrícola.

A dita promessa secular deverá ser “paga” pela comunidade como um todo, numa tradição que se estende ao longo de sucessivas gerações de romeiros. Assim, a organização dos Círios poderá caber a confrarias ou irmandades de um lugar, ou a juízes e mordomos organizados em comissões de festas. O que importa reter é que a comunidade que peregrina anualmente para pagar o voto percorre por vezes longos trajetos dentro da mesma região, podendo nalguns casos implicar vários dias.

A designação de Círio a este tipo de manifestações religiosas estará relacionada com a prática secular de oferendas em cera à entidade sagrada, nomeadamente expressa no transporte de uma vela ou tocha junto da imagem de devoção. As velas assumem um valor simbólico notório, simbolizam a luz divina que envolve simultaneamente a imagem venerada, bem como o devoto, o peregrino.

No início, o Círio de Nossa Senhora do Cabo transportava uma bandeira que saía de uma freguesia deslocando-se ao Cabo Espichel, passando, após o ritual, para a freguesia responsável pela peregrinação anual seguinte. No século XVIII foi oferecida uma imagem peregrina que passou a acompanhar a bandeira e a ser transportada solenemente numa berlinda. No final do século XIX, em 1887, a ida ao Cabo Espichel deixou de realizar-se, passando o transporte da imagem a efetuar-se de freguesia em freguesia.

Esta manifestação de religiosidade popular sofreu várias vicissitudes, tendo sido marcada por continuidades e descontinuidades que refletem em cada momento o contexto histórico do país. Durante o reinado de D. João I assistiu-se ao aumento da popularidade do culto a Nossa Senhora do Cabo, uma vez que esta região do Sul foi poupada às pestes que assolaram a maior parte do território português, circunstância que na altura foi atribuída à proteção da imagem venerada. No século XVIII, com a afirmação do poder real e a prosperidade que o ouro do Brasil permitia, o santuário do Cabo Espichel sofreu uma grande ampliação, através de uma campanha de obras avultada, a qual envolveu a construção de um novo templo, bem como a edificação de um aqueduto com uma casa de água e uma horta, a reorganização do espaço fronteiro à igreja, com a construção de habitações para os romeiros, tudo isso conferindo a este local uma dimensão cénica que evoca o espírito do barroco.

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