Paisagens e Patrimónios
Félix de Avelar Brotero: um botânico lourense
6 de agosto de 2016
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Agora que o tempo está pro¬pício para ir ao campo e fruir dos seus múltiplos motivos de atracção, julguei oportuno relembrar uma figura maior da Botânica, um naturalista (como se dizia dantes…) português de renome internacional, Félix da Silva Avelar, mais conhecido por Avelar Brotero. Este pioneiro da Botânica em Portugal nasceu no nosso Concelho, mais precisa¬mente em Santo Antão do Tojal, numa casa que ainda hoje existe e que aliás ostenta uma placa alusiva ao seu antigo e ilustre habitante. Esta casa, que pelo aspecto, embora modesto, se vê ter pertencido a gente abastada, ainda conserva na fachada um portal manuelino e está inserida no núcleo antigo da povoação, sendo fácil identificá-la. Ora, o nosso naturalista terá nasci¬do nessa residência a 25 de Novembro de 1744, assim come¬çando um longo percurso de uma vida particularmente atribulada, durante a qual, apesar de várias vicissitudes, ele conseguiu anga¬riar cargos importantes e reco¬nhecimento do seu valor como homem de ciência.
Félix da Silva Avelar ficou órfão de pai (médico pela Universidade de Coimbra) e de mãe ainda muito novo, com apenas dois anos de idade. Estas circuns¬tâncias trágicas determinaram que em 1746 fosse confiado aos cuidados do seu avô paterno, Bernardo da Silva, com quem viveu até à morte deste. Com oito anos de idade ficou a cargo do seu outro avô, José Rodrigues Carreira Frazão, almoxarife dos paços reais de Mafra, sujeito que o acompanhou até aos 19 anos e que, de certa maneira, garan-tiu a sua formação escolar no Colégio dos Religiosos Arrábidos de Mafra, onde estudou com aproveitamento brilhante, Língua Portuguesa, Latim, Retórica e Filosofia Racional. Foi nesta fase da sua vida que despertou o gosto pela música, mais preci¬samente pelo cantochão, canto litúrgico para o qual revelou bons dotes vocais, aptidão que lhe foi essencial anos depois quando, por falecimento deste seu avô, se viu constrangido a cuidar do seu próprio sustento. Em 1768, e apenas, acentuo, com 19 anos de idade, o nosso jovem conse¬gue obter o lugar de capelão-can¬tor da Igreja Patriarcal de Lisboa, posto que lhe permitiu assegurar os rendimentos necessários para sobreviver e continuar os seus estudos. Nesse mesmo ano foi ordenado diácono e, possivel¬mente, teria chegado longe na carreira eclesiástica não fosse a perseguição de que foi alvo por parte da Inquisição devido às suas ideias iluministas.
Um ano depois, em 1770, Félix da Silva Avelar inscreveu-se na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra, que na época tinha cursos livres, o que lhe permitiu continuar com o seu cargo de capelão-cantor em Lisboa e apenas fazer os exames no fim dos anos lectivos. Conseguiu frequentar esses cur¬sos três anos seguidos; mas uma das consequências da reforma pombalina das universidades foi a de acabar com este tipo de cur¬sos, ao deliberar que só podiam realizar os exames finais aqueles que frequentassem os mesmos. Impedido de ir para Coimbra por falta de rendimentos, Félix deci¬diu prosseguir com a carreira eclesiástica com o propósito de se ordenar, o que acabou por nunca acontecer.
Com efeito, o nosso ilustre con¬cidadão era, para o seu tempo, um homem moderno, pois foi um dos muitos adeptos das novas ideias das luzes, onde a razão, o conhecimento científico - indis¬sociável do método e da clas-sificação ordenada dos seres - significavam uma visão escla¬recida do homem e do mundo. As suas ideias iluministas, a sua paixão pela ciência e também a sua amizade com o poeta Filinto Elísio (reputado defensor das ideias liberais), obrigaram-no a fugir para Paris (na companhia de Elísio), cidade onde viveu 12 anos emigrado, conseguin¬do assim escapar às malhas da malfadada Inquisição. Mas se Paris representou um período de maiores dificuldades financeiras, foi também uma etapa de grande enriquecimento pessoal e cientí¬fico. Foi durante a sua estadia na capital francesa, que, seguindo a moda dos estudiosos de usarem nomes filantrópicos, ele acres¬centou Brotero (“amante dos mortais”, de acordo com a eti¬mologia grega) ao seu nome de nascimento, explicando-se assim que tenha sido como Félix de Avelar Brotero que ficou conheci¬do para a posteridade.
Fazendo traduções para se sus¬tentar, conseguiu frequentar aulas de História Natural, tendo tido como professores, figuras proe¬minentes do Museu de História Natural de Paris como Buffon, Jussieu, Lamarck, Valmont de Bomare, Auberton, entre muitos outros. De Brisson recebeu na Académie de Pharmacie lições de Botânica, uma matéria onde se viria a revelar um notável professor e cientista. Terminou com sucesso os seus estudos de História Natural e alcançou mais uma vitória ao doutorar-se em Medicina pela Universidade de Reims. A partir daqui consa¬grou a sua atenção à Botânica e consolidou a reputação adquirida no mundo das ciências naturais com a sua primeira obra intitula¬da “Compêndio de Botânica, ou de Noçoens Elementares desta Sciencia, segundo os melhores Escritores Modernos, expostas na Língua Portuguesa”, editada em Paris em 1788. Entretanto, e apesar das suas ideias libe¬rais, a evolução dos aconteci¬mentos que levaram à Revolução Francesa desgostou-o e regres-sou a Lisboa como reputado naturalista, em 1790, novamente na companhia do seu grande amigo, Filinto Elísio.
Logo em 1791 recebeu da rainha D. Maria I a regência da cadei¬ra de Botânica e Agricultura na Universidade de Coimbra. Foi-lhe igualmente atribuída a direcção do Jardim Botânico da mesma Universidade, o qual reestrutu¬rou. Este jardim tinha sido con¬cebido apenas para o estudo das plantas medicinais, realida¬de que Félix Brotero alterou ao introduzir também uma verten¬te direccionada para o estudo botânico e agrícola das plantas. Instalou escolas sistemáticas, organizadas segundo o método de Lineu, plantando novas espé¬cies, provenientes das muitas “viagens filosóficas” que realizou em Portugal, ou vindas do estran¬geiro. Foi sob a sua direcção que novas alas e edificações foram criadas no jardim e também foi ele que principiou o primeiro Herbanário da Universidade de Coimbra, que se revelou essen¬cial para o estudo da flora portu¬guesa. Precisamente umas das suas grandes obras, entre as muitas que escreveu, foi a “Flora lusitanica”, publicada em 1804, compêndio que incluía quase duas mil espécies de plantas nacionais, ordenadas segundo o sistema de Lineu, a qual se tor¬nou uma referência para todos os inventários florísticos publicados a partir de então. Com efeito, esta sua obra angariou muitos elogios e foi várias vezes compa¬rada, devida à sua precisão, às obras do próprio Lineu, um dos primeiros grandes naturalistas.
Com a chegada da primeira Invasão Francesa, comandada pelo general Junot em 1807, abandonou Coimbra e refugiou-se em Lisboa, onde foi nomeado director do Real Jardim Botânico da Ajuda. A passagem do exér-cito francês pela cidade de Coimbra causou-lhe avultadas perdas, pois a sua casa foi incen¬diada e muitos dos seus livros destruídos. Só voltou a Coimbra em 1810, com o propósito de conseguir a sua jubilação.
Entretanto em Lisboa, e naquele seu novo cargo, teve a tarefa de reorganizar o Museu e o Jardim, tarefa quase impossível após a passagem do Comissário francês para as Ciências e das Artes, Geoffroy de Saint-Hilaire, que daqui levou tudo quando poderia interessar para o Museu de Paris. Se a delapidação do museu tor¬nou a sua reorganização impra¬ticável, o esfoço meritório de Brotero conseguiu reabilitar o jardim e permitiu a elaboração do respectivo catálogo.
Já quase no final da vida foi eleito deputado pela provín¬cia da Estremadura às Cortes Extraordinárias e Constituintes de 1821. Participou de forma entusiástica na discussão da Lei dos Cereais, defendendo o culti¬vo de centeio e trigo numa escala que permitisse produzir pão para toda a população portuguesa, em quantidade e a um preço aces¬sível.
Acabou por falecer em Lisboa a 4 de Agosto de 1828. O prestígio do cientista, entre os botânicos da sua época, foi grande e em sua homenagem várias plantas ostentam o seu nome. Sem dúvi¬da que a consagração nacional e internacional de Brotero contri¬buiu para dar a Portugal um lugar no mundo das ciências naturais. E a vida deste notável investiga¬dor começou, como disse, aqui, na nossa região, o que nos deve orgulhar, e muito.
Este colunista escreve em concordância com o antigo acordo ortográfico