Paisagens e Patrimónios
A simbologia da procissão, um património imaterial
3 de setembro de 2016
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A festa religiosa tem sido um acontecimento social constante que atravessou várias épocas da cultura europeia ocidental, mani¬festando o seu apogeu durante o exuberante período barroco (séculos XVII e XVIII). Ela foi sempre um momento de excep¬ção no quotidiano das comuni¬dades católicas, rurais ou urba¬nas, ao longo de séculos. É uma manifestação colectiva que, com o seu momento alto constituí¬do pelas procissões, sempre se realizou, até hoje, em espaços públicos, assumindo naturezas e motivações diversas, mas juntan¬do sempre o sagrado e o profa¬no, assegurando o sentimento de pertença das pessoas à comuni¬dade, e permitindo a muita gente conhecer-se e, como noutros acontecimentos colectivos, criar novas relações e afectividades.
O momento da procissão corres¬ponde a uma junção de tempos diferentes, na medida em que é um acontecimento simultanea¬mente cíclico (realiza-se num determinado momento do ano, repetidamente) e de ruptura com o quotidiano, com a vida do dia-a-dia das pessoas. Todos os anos a festa religiosa marca uma nova etapa, sabendo os fiéis que no ano seguinte retornarão ao mesmo local e na mesma altura para a mesma celebração. Mas ela marca também uma quebra no quotidiano, pois as tarefas usuais da comunidade são inter¬rompidas para a preparação e concretização da procissão.
Se a procissão é uma festa de cariz religioso, as fronteiras entre o sagrado e o profano são esba¬tidas, como disse, precisamen¬te pelo carácter desse momen¬to festivo, nomeadamente pela devoção prestada às imagens dos santos preferidos dos fiéis, pelo cumprimento de promessas, pelo arraial onde todos se cru¬zam ao longo dos dias festivos, etc. Por exemplo, a comensa¬lidade (consumir refeições em comum) também está presente como elemento muito importante de aproximação das pessoas e de partilha, assim como a música e a dança, que concorrem para sociabilidade entre os festeiros.
Quando se deu a chamada Contrarreforma - a resposta do catolicismo ao movimento da Reforma protestante, que afas¬tou muitos crentes e povos da obediência papal - reuniu-se um famoso Concílio em Trento, na Itália (1545-1563). Este procurou encontrar soluções, por parte do Papa, àquele desafio protestan¬te. Algumas das recomendações que dele resultaram procuraram afastar os aspectos profanos do espaço religioso, proibindo um conjunto de práticas consi¬deradas pouco próprias, como a dança e o acto de comer no interior das igrejas. O Concílio também se debruçou sobre o culto e veneração de imagens e relíquias, regularizando práticas aceitáveis de acordo com a orto¬doxia da fé, na interpretação de Roma.
A festa como momento excep¬cional cíclico, na medida em que se repete, envolve a actua¬ção de muitos dos elementos da comunidade, fortalece, como referi, a coesão social e o sen¬timento de pertença, pela vivên¬cia de experiências e memórias comuns. Mas a festa tem sempre uma certa duplicidade, pois é igualmente uma representação, uma encenação, da organização social duma certa comunidade e, por isso, acentua as diferenças, desigualdade de estatutos e de poderes reveladas principalmen-te no cortejo. É tão importante o papel daqueles que vão no desfile para serem vistos, como o dos que assistem, pois só nesse jogo de espelhos se reconhe¬cem todos como sujeitos sociais, como elementos pertencentes à mesma comunidade.
Outro aspecto essencial a res¬saltar é que a procissão é igual¬mente uma ampliação do espaço sagrado. Representa a saída do interior da igreja para o espaço público. Esse movimento expan¬sivo, de dilatação espacial do sagrado, não pode acontecer de qualquer modo. Antes, o per¬curso é assinalado no espaço urbano ou rural por um conjunto de símbolos que demarcam cla¬ramente o trajecto, acentuando uma vez mais o carácter excep¬cional do acontecimento.
As ruas, os edifícios são trans¬formados por uma arquitectura efémera que invade o espaço público e que irá durar o tempo da festa. Arcos de madeira pinta¬dos pendões, grinaldas de papel colorido, colchas pendentes das varandas e janelas “vestem” o lugar. Muitas vezes as povoa¬ções são “renovadas” com a pin¬tura das fachadas e muros, com limpezas no interior das casas nos dias que antecedem a festi¬vidade. Tudo se prepara para o acontecimento, o lugar, as pes¬soas, os santos. Se o campo visual é assim enriquecido com materiais e cores diversas, no chão, flores e ervas aromáticas como o alecrim e o rosmaninho “purificam” o caminho do cortejo religioso. A música não é igual¬mente descurada, os foguetes, os sinos, as bandas de música estão presentes ao longo dos vários momentos da festa, enri¬quecendo-a. Podemos, pois, afirmar, que a procissão é um acontecimento total, envolve os vários sentidos (visual, olfactivo e auditivo) e altera a percepção das pessoas pela proximidade dos símbolos sagrados, rodea¬dos de gente, mas como que pai¬rando acima das cabeças, sobre os andores.
Portanto, a procissão é também movimento. Com efeito, na pro¬cissão, tanto as imagens como os fiéis movimentam-se de forma compassada, muitas vezes ao som da música. É uma altura em que a imagem “assume” uma caraterística dinâmica, sai do nicho ou do altar onde só pode ser observada de frente ou de perfil e aparece em todo o seu esplendor de figura presente, viva, a três dimensões. Por sua vez, o crente abandona uma ati¬tude passiva de contemplação (parado junto da imagem quando esta está no interior do espaço religioso), para se deslocarem ambos – a imagem e o fiel - no “mundo”.
Os interessados nestes temas, Os interessados nestes temas, poderão ver, até 10 de Setembro, no Museu do Vinho e da Vinha em Bucelas, uma exposição, organi¬zada por uma equipa da Câmara Municipal de Loures, alusiva à festa do Anjo Custódio da nação, a qual todos os anos tem lugar naquela localidade no terceiro domingo de Julho. Como seria de esperar, procissão e arraial estão presentes nesta importante manifestação colectiva do nosso Concelho.
Este colunista escreve em concordância com o antigo acordo ortográfico