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Entrevistas

Entrevista a Nuno Paulino

"fui educado num meio com muita cultura"

7 de outubro de 2024
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Estamos mais uma vez no Centro Comercial do Continente Loures para mais uma entrevista. O nosso convidado é Nuno Paulino. Obrigado por teres vindo. Nuno é ator, fundador do Artelier, TNR (Teatro Nacional de Rua) e do projeto Barca Criativa, entre muitos outros, além de ser vencedor do prémio Burning Man.

O que te fez chegar ao teatro e te transformar em ator?

Pois, podem haver várias razões... Talvez as pessoas já nasçam com aquilo que têm de fazer. Eu nasci em Odivelas, que na altura era concelho de Loures, e não havia absolutamente nada. Contudo, fui educado num meio com muita cultura. Tinha livros em casa com fartura e sempre fui muito apaixonado pela leitura e pela escrita; quando era miúdo, queria ser escritor. No fundo, autor, de alguma forma. E os dramaturgos fazem exatamente isso: escrevem peças de teatro, que é o que eu faço, independentemente da linguagem ser mais literária ou menos literária. Crio o guião de uma peça de teatro, uma obra autoral. A determinada altura, percebi rapidamente que gostava dessas coisas porque não queria estar a estudar, não me identificava com o sistema de ensino. Nunca mais pensei nisso. Sou da geração que foi muito flagelada pelas drogas e outras questões. Por um lado, isso foi um flagelo, mas por outro lado, também foi libertador, porque havia uma necessidade muito grande de romper com as estruturas do passado. "Destruir o que está no passado e construir uma nova fé." O Teatro da Mala Posta, por sorte, surgiu em Odivelas, e eu fui lá bater à porta e pedi para fazer parte. Fui parte da primeira equipe de animação cultural. Apesar de ser de alguma forma marginal, estava a trabalhar desde os 17 anos, e isso já foi aos 19 anos. De repente, passei horas e horas, para não dizer semanas ou meses, a observar encenadores a darem dicas e a seguirem as indicações do texto: "Olha, vai para a direita alta; faz isso, mas com mais emoção." Se fores a ver hoje, muita gente que sai de conservatórios de teatro não teve essa escola. Eu tive essa sorte.

Quando falamos da Malaposta, falamos de teatro em palco. No entanto, o teu caminho tem sido muito o teatro na rua. Também fazes teatro em palco, naturalmente, mas por que essa escolha, por que esse caminho? E qual é o ângulo que gostas de dar às tuas peças?

Sim, o Teatro Nacional de Rua e o Artelier nasceram numa fase diferente da minha vida, por volta da Expo 98, em que eu já fazia artes de rua e escrevia espetáculos infantis e de animação de rua. Mas, de repente, ao ver aquelas grandes montagens, percebi o que fazia. Aquilo não tinha nome na minha cabeça. Eu já construía aqueles mecanismos e aquelas máquinas de cena, mas não sabia que havia outras pessoas a fazê-lo. A internet ainda era uma coisa débil. A partir desse momento, inscrevi-me num curso superior de Dramatologia para Espaço Público em Marselha e passei três anos a fazê-lo. Fui a primeira pessoa a ter formação superior em arte para o espaço público em Portugal, e até hoje, só há duas pessoas com essa formação no país.

De alguma forma, no teu percurso, há um momento marcante: a ida aos Estados Unidos e ao Burning Man, e o sucesso que adquiriram, visibilidade, notoriedade e, acima de tudo, o prémio, correto?

Realmente, depois de 20 anos a rodar pelos 300 municípios do país, 18 países da Europa, África, Tunísia, Marrocos, e tudo isso, de repente ganhamos um prémio no maior festival de cultura alternativa, o Burning Man, com uma escultura de fogo. Digamos que, se houvesse um Óscar para a nossa profissão... O projeto chamava-se "O Nome da Rosa" e já estava dentro da ideia de barcos e de ir à procura do que em Portugal nos diferencia. Fazíamos esculturas de fogo bidimensionais. O projeto é de arte transformativa, onde o público se transforma em ator. Ou seja, desde o início, como o grande mestre brasileiro, Augusto Boal, propunha no teatro participativo, buscávamos fazer com que o público participasse na criação. Assim, essa escultura era feita com a preparação do fogo pelo público durante o dia, sempre com grandes conversas e explicações sobre o processo. Ao mesmo tempo, a obra representava uma deusa, Gaia, a mãe terra. Bem, isso já faz algum tempo, mas tinha também uma grande roda de leme e a mensagem era: ainda temos tempo de rodar a peça, rodar a obra com as mãos do homem e fazer com que a natureza regenere. Foi notório que ficamos durante três anos com o prémio honorário do Burning Man, não porque somos os melhores, mas porque veio o Covid e a humanidade realmente estava prestes a mudar. Aquela grande roda de leme deu a volta ao mundo e a humanidade ficou de pernas para o ar. Não foi uma profecia, mas vivemos tempos que parecem proféticos. É verdade.

Falaste de leme e barco. O que é a Barca Criativa, um projeto onde tive a oportunidade de participar?

Aqui no Concelho de Loures, tivemos, não importa agora dizer por que razões, oito anos sem fazer nada e com orçamentos microscópicos. De repente, quando muda a dinâmica e acaba o Covid, novas oportunidades surgem. Nós resolvemos voltar-nos para o público que nos fazia falta. Temos um público mundial, nacional, fãs em todo lado, mas não temos comunidade aqui. Além disso, há essa paixão antiga pelo Rio Trancão e pelo Tejo em mim. Sou um grande apaixonado pela náutica desde sempre, e como diretor artístico, sou eu quem comanda a embarcação. Criamos um festival dedicado ao público local, que pudesse ser útil, não à companhia, mas como um novo caminho, uma regeneração. Se "O Nome da Rosa" nos Estados Unidos ardeu e o mundo ia mudar, agora chegamos à água. Não pelo fogo, mas pela água, queremos mudar a relação com o Trancão e com o Tejo em Loures. Queremos que hoje se reconheça e se respeite o Rio Tejo e o Trancão, que estão muito afastados. Penso que aí estamos completamente de acordo com os políticos e com a dinâmica social que se tem adquirido. Tivemos uma comunidade internacional presente, convidados de Marrocos, Ceuta, Cádiz, representando todas as comunidades do Rio Tejo, desde os pescadores avieiros até a Marinha do Tejo. No último dia, tivemos uma programação comum com uma associação do Parque das Nações e, também, com o conselho vizinho de Vila Franca, ou seja, unir o Tejo e as pessoas que o valorizam. Teve conosco uma fotógrafa chamada Zélia, que é a memória do Tejo, eternizando os momentos de todas as comunidades. Além da arte, com pessoas do Peru, da Bélgica, fazendo espetáculos, e o espetáculo feito pelos amigos da Barca, que tu presenciaste...

Podemos dizer que a barca transporta a água numa linguagem de união, mas também de transformação. Agrada-te esta frase?

Sim, agrada-me. Este ano, a viagem foi por mar até Marrocos. O ano passado, tinha sido até Ceuta. Agora vai ser por rio, desde a Espanha, desde a central nuclear e os transvases com que os espanhóis retiram a água do Tejo até à foz. Ou seja, este ano, o Rio Tejo é realmente o central. Já temos algumas parcerias até com uma ilha, uma novidade, atenção, em primeira mão. Com um dos Mouchões e, portanto, as atividades, em parte, vão acontecer numa ilha, com várias parcerias ligadas à náutica. O tema central será a disputa pela água.

Este ano, que projetos destacarias?

O lado positivo é fantástico. Muitas coisas aconteceram. Primeiro, o Festival da Barca. A nossa participação nas Festas de Loures sempre existiu e foi fantástica. E tem sido bons momentos. Destaco o Ricardo Leão, nosso presidente, que nos convidou para uma obra de escultura, dando continuidade às esculturas que temos feito no estrangeiro e noutros pontos do país. Realizámos a obra do Carnaval de Loures, que foi muito interessante e que deveria ser mais comunicada e melhor explicada ao público.

O desvelar da máscara…

A teoria da máscara do teatro diz que não nos mascaramos de algo, mas sim mostramos o que somos. Andamos sempre mascarados do que não somos.
O que estás a dizer faz lembrar uma expressão que ouvi há alguns anos de um amigo que também é artista plástico e acumputor, Jorge Ponce, que é brasileiro, sobre a chamada acumpuntura urbana: uma agulha aqui, outra ali, para que a energia flua nas diferentes zonas do território.
Sim, porque temos receio de que tudo se transforme em lanchonetes e Coca-Colas, e que, eventualmente, espaços culturais... Às vezes faz-se um evento e diz-se que haverá cultura, mas depois não acontece porque faz muito sol ou por outros motivos. E o espaço acaba sendo um anfiteatro. Há montes de anfiteatros ou até muitas ciclovias, mas a cultura não se estabelece verdadeiramente. Uma das obras que gostaria de realizar é recuperar embarcações abandonadas e afundadas. Existe um estaleiro que possui várias dessas embarcações, e isso poderia se tornar um projeto de cidadania, ligando nosso território à náutica e ao passado. É possível que Dom Dinis tenha chegado a Odivelas pelo Trancão. As subidas do Trancão com grandes embarcações eram uma realidade. O Trancão era uma autoestrada do mar.

Fora do Concelho, que outros projetos tens em curso ou na calha para o próximo ano?

Temos uma missão no Guadiana, que começa agora em novembro, em Vila Real de Santo António, com algumas parcerias com o município e Punta Umbria, do outro lado. Este projeto da Barca Criativa não é apenas do Concelho de Loures, mas também mantém nossa dinâmica internacional. Estamos a trabalhar para a Galiza, relacionado com o Carnaval. Estamos a apoiar o projeto de Enrique Franzou, meu tenente e diretor técnico, que este ano está a fazer a Costa Oeste dos Estados Unidos. Ele está a trazer do Burning Man uma roulotte, uma caravana que vai percorrer o caminho, abordando a crise climática.

Projetos não faltam, em boa verdade...

E em vários continentes. Está difícil não ter projetos. Temos a pretensão de chegar a Cabo Verde em 2026, pois existem muitos festivais lá, e esse é o meu sonho. Estamos no caminho do João Branco, somos os únicos em Portugal que se assumem como teatro de rua, numa época em que ser teatro de rua era ser um saltimbanco, que ainda não estava na moda, mas esteve e já não está outra vez.

Saindo da rua, o que me dirias sobre o teatro de palco?

Não te sei dizer. Nós somos realmente marginais. Não fazemos parte do teatro em Portugal, mas sim de um movimento alternativo que se move pela sua verdade interna. Não estamos à procura do que os outros andam à procura, mas sim do ver e do contar. Por isso, os nossos projetos estão todos em torno dos livros de viagem. O ano passado, fizemos o nosso "Manifesto de Viagem", o jornal da Barca Criativa, que entregamos ao Concelho de Loures para reflexão. É isso que as artes de rua e o espaço público podem proporcionar. Como especialista em dinâmicas para o espaço público, diria que está morto, que não existe. Foi consumido por feiras medievais e eventos locais que não permitem a verdadeira criatividade. Está morto o espaço público do teatro, porque as companhias de rua se deixaram escravizar. Não "me gusta". Há "sombras" como Mário Viegas, que, estivesse onde estivesse, não deixaria... não gostaria de estar na gaiola.

Não deixaria a gaiola fechar.

A gaiola fechar. E eu gosto de estar fora da gaiola. Por isso, Mário é uma das pessoas do teatro com quem mais me identifiquei, assim como Césariny na poesia. São pessoas que, devido à forma como veem e sentem a vida, não conseguem estar em lugares onde não haja liberdade. O mar, o rio, a arte, a poesia são pratos de liberdade, da afirmação da tua persona no mundo. Se a arte não for autêntica, então não vale a pena. Não faz sentido.

Se tivesses que categorizar o teu trabalho, qual seria a tua escolha?

Se eu tivesse que colocar uma etiqueta, seria ciberpunk, cibernético, contra-cultura neurotradicional. Eu costumo dizer que faço novas tradições. A mudança é a maior tradição do mundo. As tradições existem porque mudar é algo que o homem sempre fez. Isso é realmente o que é tradicional: mudar. "Um dia, um senhor estava a fazer um bolo e disse: 'Ah, mete este bolo no forno.' 'Ah, não podes', dizia a irmã, 'porque a avó faz sempre isso em dois tabuleiros.' Então, houve uma grande discussão, quase se bateram, e foram ter com a avó, que explicou: 'Ah, filhos, não, era porque o forno era pequeno, e primeiro ia um tabuleiro, depois o segundo, porque a família era grande'." Contou-me isso Luís Fernandes. Quando o forno cresceu, a tradição teve que mudar. No fundo, é dar continuidade ao que somos, mas fazendo sentido, sem ser apenas repetir, por isso as feiras medievais me incomodam um pouco. De que vale fazer uma recriação sobre o judaísmo e os povos árabes se não pensarmos na Palestina e nas guerras que existem? É necessário haver uma relação entre o que sabemos da História e as conclusões que podemos tirar para o presente. Novas tradições...

Nuno, peço-te notas finais.

Além de agradecer à minha mãe e ao meu pai, queria agradecer a todos os outros. Isso é possível graças aos acreditadores, pessoas que acreditam e dizem: "Ah, está bem, vamos fazer." Esses acreditadores incluem todos os logotipos oficiais e institucionais. Passa pela Câmara Municipal, pelas juntas de freguesia, por ti, por muitas pessoas. E também por todos que vão lá trabalhar, seja voluntariamente ou não, recebendo uma ninharia porque nós não temos mais, ou recebendo bem, mas dando o seu melhor. E, principalmente, uma mensagem de solidariedade para aqueles que sofrem hoje, para as pessoas que não têm hipótese de se exprimirem, porque a arte é uma forma de expressão. Então, a todos aqueles que não têm a forma de se exprimir, que encontrem a sua voz.
Aos acreditadores.

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