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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Tempo, esse património que nos regula

7 de janeiro de 2024
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E, de repente, estamos em janeiro de um novo ano. É uma coisa que leva o seu tempo a interiorizar plenamente, mesmo que tenhamos comprado as nossas agendas para 2024 há meses, para planearmos o nosso futuro (atual) ano, mesmo que nos tenhamos envolvido em comemorações familiares e coletivas da praxe, numa azáfama enorme, etc., etc. A verdade é que todo esse corrupio é seguido por um silêncio que parece dizer-nos: “olha, já caímos mesmo no novo ano”, e há que pensar no que continua e no que muda, ou seja, incorporar plenamente este espírito de planeamento típico do nosso tempo apressado.
O Natal e o “Ano Novo”, essas celebrações, foram uma espécie de paragem do tempo (subjetivo), um tempo sem tempo (pelo menos, sem tempo de trabalho no emprego de muita gente... outra não, claro), um limiar, e perguntamo-nos: por que razão precisa tanto a humanidade destas quadras, destas marcações do tempo, que não são apenas as da natureza (primavera, verão, outono, inverno) ou dos astros (equinócios, solstícios, lua cheia, quarto crescente, quarto minguante, etc., etc.), mas da organização da própria sociedade em que todos os cidadãos, por muito diferentes que sejam as suas atividades, se têm de regular por um calendário comum. Calendário que se usava muito nas casas e nas empresas, e ainda muitos compram, com imagens diferentes e bonitas para cada mês, calendário que vem nas agendas, nomeadamente para aqueles que ainda as compram em suporte de papel, e que servem para anotar o que tem de se fazer e quando, e eventualmente o que se fez, para um hipotético balanço futuro. Tudo na vida, do nascimento à morte, é regulado por este tempo do calendário, que é um tempo social, e é também um tempo do Estado, um tempo que se nos impõe de cima. Quando é preciso cumprir com as obrigações múltiplas que cada atividade, cada vida individual ou coletiva, implica: tudo isso, no começo do ano, deve começar a ficar arrumado na nossa cabeça, incluindo os momentos – neste caso de 2024 – em que poderemos gozar férias, aproveitar as chamadas “pontes” para poder sair um pouco da rotina, etc. Ou seja, o tempo é o grande senhor de todos nós. Queremos saber em que circunstâncias nascemos, eventualmente a que horas do dia ou da noite da data em que celebramos o nosso aniversário, e intimamente interrogamo-nos sobre as circunstâncias em que um dia deixaremos de viver; embora estas últimas pertençam a um tempo eternamente adiado, na nossa consciência, até ao momento dele se presentificar, dele chegar.
A noção de trabalho, própria da sociedade moderna, capitalista se quisermos, está intimamente ligada ao tempo: o que o empregador paga ao empregado (agora cada vez mais designado “colaborador”) mede-se em horas de trabalho, ou seja, em quantidade de mão de obra medida em tempo vendido ao empregador, muito embora, à medida que a produção de bens se foi tornando cada vez mais sofisticada, não seja já só o tempo que conta, mas sobretudo a qualidade do que se produz com esse tempo, o seu potencial valor quando posto na concorrência do mercado.
Estando as nossas vidas, portanto, endossadas ao tempo, ao tempo medido com cada vez maior rigor pelas máquinas que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia permitiu desenvolver, não há dúvida de que andamos todos a correr contra o tempo, que todos nos queixamos de que não temos tempo para nada, ou seja, que cada vez mais nos sentimos demasiado apertados pelas temporalidades que a sociedade moderna instalou, naturalizou e nos impõe. Porque, claro, essas temporalidades são uma invenção humana, a mais artificial que se pode conceber. E por isso “diz-me em que ocupas o teu tempo”, no trabalho, no estudo, naquilo que és forçado a fazer para viver, e também naquilo em que te evades da rotina nos tempos livres e nas férias, e dir-te-ei quem és.
Como estou condicionada a escrever um texto breve (um texto para se ler em pouco tempo: lá está a íntima relação entre o tempo e o espaço), vou apenas fazer referência geral a dois modos muito distintos de organizar o tempo na história da humanidade: os do caçador-recolector, que vive do que a natureza lhe dá, e os do agricultor, que vive do que uma natureza humanizada produz. O tempo da caça, feita tantas vezes em grupo, é instantâneo: morta a presa, esta é partida em bocados, repartida pelo grupo, e consumida. Implica, pois, que se volte a caçar. O tempo cíclico do agricultor liga-se à temporalidade das plantas de que se alimenta: se for um agricultor cerealífero, tem de dispor de sementes para deitar à terra no momento próprio, e enquanto elas se transformam em realidades comestíveis, tem de sobreviver à custa de colheitas anteriores. E assim sucessivamente. De modo que, explicando isto tudo muito simplisticamente, o agricultor não tem uma produção/consumo instantâneos, como o caçador, mas diferidos no tempo. Claro que se tanto um como outro (caçador ou agricultor) tiverem meios de conservar os alimentos (congelando-os, salgando-os, fumando-os, etc.), já aqui “outro galo canta”. Ou seja, a invenção de processos de armazenagem foi crucial na história da humanidade. E o que é a armazenagem? É uma forma de acumular património e, por essa via, de criar uma paisagem diferente.

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