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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

O solstício de inverno e as antigas Saturnais romanas

9 de janeiro de 2022
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Como é do conhecimento geral em dezembro acontece o solstício de inverno, fenómeno astronómico que marca o início do inverno. Na Roma antiga este acontecimento era celebrado com um festival em honra do deus Saturno, festival esse conhecido como Saturnália. Esta celebração ocorria a 17 de dezembro no calendário juliano, e mais tarde o período de festa estendeu-se até ao dia 25 de dezembro.

Tratava-se de uma festividade bastante comemorada, muito popular em Roma que reunia as celebrações relacionadas com o final de um ano agrário e religioso. As suas comemorações aconteciam numa altura em que se recolhiam os produtos agrícolas, antes do longo inverno, significando por isso não só uma época de abundância, mas também um momento de esperança de boas colheitas no ano que começava.

Durante a Saturnália ofereciam-se sacrifícios no Templo de Saturno, seguidos de um banquete público. Os dias de celebração deveriam ser dias de alegria, de paz, onde as piadas, os gracejos faziam parte da festa, onde eram permitidos jogos de azar que estavam proibidos durante o restante ano. Neste período as famílias deveriam promover a harmonia entre si, anulando qualquer desavença anterior, sendo comum não só visitar familiares e amigos, mas também trocar presentes entre si. Os presentes eram designados por sigillaria, normalmente eram constituídos por pequenas figuras de terracota, mas podiam ser de prata, ou então as ofertas podiam ser velas de cera que simbolizavam uma luz no meio da escuridão do inverno.

Na Saturnália os romanos “entravam” num tempo de festa contínua numa atmosfera de Carnaval que permitia uma certa inversão dos papéis sociais, onde alguns senhores serviam os seus escravos à mesa, onde os homens se vestiam de mulheres e onde o jogo era permitido, tudo isto num ambiente satírico de festa. Este momento de celebração implica uma interrupção dos trabalhos quotidianos, eram dias em que as várias atividades paravam para dar lugar às celebrações.

A paródia ou o lado satírico destes festejos não tinha um sentido negativo, pelo contrário funcionavam como crítica social, uma vez que a paródia das Saturnais atingia todos por igual, independentemente do lugar que ocupassem na sociedade. Aliás, o riso das Saturnais, ou seja, o riso que provocavam era considerado como algo benéfico. Com efeito, o riso era capaz de esconjurar o mal. Neste período de paragem do curso normal da vida em sociedade era permitido a todos brincarem e todos eram alvo das brincadeiras e dos ditos, mas todos saíam ilesos no final.

De acordo com as fontes da época, o banquete e as práticas festivas associadas às Saturnais implicavam de certo modo um período onde tudo de certo modo se invertia, havia uma inversão do funcionamento da sociedade: o dia pela noite; a inversão dos sexos, onde os homens se vestiam de mulheres e cantavam em voz de falsete, significando o retorno ao hermafroditismo primordial; a inversão social com os senhores também alvo de chacota e alguns mesmo servindo os seus servos à mesa; a eleição do arconte bufo, cujas leis a todos os participantes de deviam submeter; e, a permissão do jogo durante os dias festivos, especialmente o jogo dos dados.

Uma das principais características das Saturnais era a grande licença que se facultava aos escravos, gozando neste período de uma liberdade que estava relacionada com uma época mítica do reinado de Saturno sobre a terra, altura onde todos os homens eram iguais, e portanto, não existiam distinções sociais.

Assim, durante as Saturnais, os escravos podiam dirigir gracejos aos seus senhores, uma vez que por um breve período de tempo das diferenças sociais eram anuladas, como já foi referido e todos passavam a ter os mesmos direitos. Assim, o pileum, o barrete de liberto, era usado por todos; por sua vez abandonava-se o uso da toga, o sinal de distinção mais visível, cujo uso era determinado juridicamente, pois distinguia o seu portador como o cidadão livre do resto da população, como escravos, libertos ou cidadãos de baixa condição social. Despojar-se da sua toga era sinónimo de festejar as Saturnais.

Todavia, a inversão social que se verificava durante as Saturnais não seria total. Embora as fontes antigas mencionem que os cidadãos livres pudessem fazer as vezes de criados dos seus escravos, e que o carácter lúdico da troca de presentes pudesse entreter os convidados durante os banquetes, na verdade, não seriam os senhores a preparar os pratos que eram servidos. Haveria um número considerável de escravos que continuariam a assegurar o abastecimento e preparação da comida, o entretenimento e sobretudo o fornecimento de vinho entre aqueles que celebravam as Saturnais.

Com o avanço do Cristianismo, que assume um papel cada vez mais preponderante com Constantino (306-337 d.C.) no século IV que passou a professar a nova religião, Saturno é destronado, assim como outros deuses do panteão romano. Gradualmente durante o século IV as Saturnais são designadas por Brumalia, por causa do solistício de inverno e desaparecem. A Igreja primitiva é contra este tipo de celebrações, consideradas pelos teólogos cristãos da época como festas pagãs, claramente conotadas com a adoração de ídolos e falsos deuses um ambiente excessivo e licencioso.

Apesar disso, podemos afirmar que as Saturnais, bem como outros cultos e rituais pagãos, ainda subsistiram em diversas manifestações de carácter mágico-religioso na Europa cristã. Exemplo disso, são as celebrações que incorporam elementos próprios das Saturnais, como o Natal (com a mesa farta e a troca de presentes), as festas relacionadas com a celebração da Páscoa, e também o Carnaval com a sua inversão social.

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