Paisagens e Patrimónios
Francisco de Holanda e a antiga ponte romana em Sacavém
9 de janeiro de 2023
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No (re)começo de um novo ano, 2023, evoco nesta crónica o notável e invulgar português Francisco de Holanda, incontornável humanista do renascimento que ao longo da sua vida escreveu, desenhou e pintou. Francisco de Holanda foi um homem do seu tempo que privou com a elite dos artistas e pensadores europeus do século XVI. Holanda foi arquiteto, escultor, desenhador, iluminador, pintor, mas também ensaísta, historiador e crítico de arte. Escreveu vários tratados vanguardistas, como a reflexão sobre pintura em “Da Pintura Antiga” (1548), ou tratado sobre retrato “Do Tirar Polo Natural” publicado no ano seguinte (1549), ou o ensaio sobre urbanismo da cidade de Lisboa no livro "Da fabrica que falece a cidade de Lisboa" (1571) para mencionar algumas das suas obras. Talvez uma das mais arrojada e vanguardista tenha sido a representação dos dias da Criação do Mundo, ou seja, De Aetatibus Mundi Imagines (trabalho concebido e desenhado entre 1543 e 1573).
Foi precisamente na obra - "Da fabrica que falece a cidade de Lisboa" - que o autor alude à existência em Sacavém de baixo, junto ao rio Trancão, de vestígios de uma antiga ponte romana que outrora teria assegurado a travessia deste caudaloso curso de água, fazendo parte da rede viária romana que ligava Olisipo (Lisboa) a Scallabis (Santarém). Sabemos que na altura em que Francisco de Holanda fez esta sugestão para reedificação da antiga ponte não existia no local nenhuma ponte erigida e em bom estado. Essa realidade prolongou-se até quase à nossa época, com efeito, durante vários séculos a travessia do rio foi garantida por barcas. Ainda no inicio das Invasões Francesas, Junot, em 1807, mandou construir uma ponte provisória de barcas para passagem das suas tropas.
A sugestão de reconstituição da antiga ponte romana apontada por Francisco de Holanda terá tido como premissa as eventuais ruinas que ainda podiam ser observadas na altura, mas também a sua erudição em antiguidade e arquitetura clássica, conhecimento que aprofundou aquando da sua estadia em Itália, principalmente em Roma, para onde partiu em 1538, como bolseiro do Rei D. João III e onde permaneceu três anos. Foi nesta cidade que Francisco de Holanda teve a possibilidade de frequentar o circulo da famosa poetisa Vitória Colonna, marquesa de Pescara, mecenas e amiga de Michelangelo Buonarroti. A interação com este grupo que frequentava a Igreja de São Silvestre possibilitou-lhe a convivência com grandes artistas, não só com Michelangelo, mas também com Parmigianino (proeminente pintor italiano do maneirismo) ou Giambologna (igualmente reconhecido escultor maneirista). O seu interesse pelo classicismo está bem expresso no seu tratado “Da Pintura Antiga” onde divulgou o essencial da obra de Michelangelo e do movimento artístico em Roma na segunda metade do século XVI.
Como chegou este português a ser bolseiro em Roma do rei D. João III? Este ilustre artista nasceu em Lisboa em 1517 ou 1518, filho de António d’Holanda, desenhador, retratista e iluminista de origem flamenga, ligado à corte portuguesa. Francisco terá começado a sua formação junto do pai, frequentando a sua escola onde obteve a educação necessária para se iniciar nas artes figurativas. Foi em Évora, cidade onde na época residia a corte portuguesa, que Francisco de Holanda contatou com relevantes vultos da cultura, tendo sido discípulo e amigo de André de Resende, mas também terá convivido com Miguel da Silva e Nicolau Clenardo, outras importantes figuras do saber na corte de então. Igualmente em Évora tem a possibilidade de conhecer algumas antiguidades provenientes de ruinas romanas, o que reforçará o seu desejo de aprofundar a sua erudição com uma estadia em Roma.
Conseguiu, como já mencionei logo no inicio, uma bolsa por parte do rei D. João III, e a viagem por terras italianas destinava-se não só ao aprofundamento do seu saber sobre as artes em geral, mas também em instruir-se sobre arquitetura militar, ou seja, aprender como edificar castelos e fortalezas à maneira italiana, correspondendo a um dos objetivos do rei português, de reforçar a defesa e soberania do reino nos territórios de além-mar. Após o seu regresso ao reino, o soberano encarregou-o de algumas obras de arquitetura, sendo-lhe atribuída a traça da Igreja do Convento de Jesus, em Valverde, próximo de Évora. Em 1550 casou-se com D. Luísa da Cunha de Siqueira.
O período mais intenso da sua carreira terá sido entre o seu regresso de Itália e o falecimento do rei D. João III, em 1557. Este acontecimento representou um sério desaire na vida de Francisco de Holanda, pois após a morte do seu protetor foi afastado da corte e também retirado de alguns dos trabalhos de arquitetura que lhe tinham sido solicitados, deixando por terminar várias obras, como por exemplo a capela-mor da Igreja dos Jerônimos, o claustro grande no Convento de Cristo em Tomar e o Paço Real em Xabregas.
A vasta e original obra Francisco de Holanda permaneceu praticamente desconhecida até aos meados do século XVIII e inícios do século XIX. Enquanto jovem foi acarinhado pela corte e apoiado pelo rei, privou com grandes figuras do Renascimento em Itália, regressou a Portugal onde foi valorizado até ao falecimento do monarca. No reinado de D. Sebastião foi perdendo progressivamente a sua influência na corte, sendo praticamente esquecido. Todavia, Francisco de Holanda é atualmente considerado uma figura cimeira do Renascimento português e muitas das suas obras foram reeditadas possibilitando ao público em geral um maior conhecimento deste artista e pensador notável.