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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

Estudando os restos de uma necrópole antiga de Bucelas

7 de agosto de 2018
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Quem atravessa o centro da vila de Bucelas, mais precisamente a Rua Marquês de Pombal e o Largo do Espírito Santo, não ficará decerto alheio às escavações arqueológicas ali em curso, promovidas pela Câmara Municipal de Loures, levadas a efeito por uma equipa de arqueólogos e antropólogos que investiga uma área com sepulturas antigas ali existente. Estes trabalhos decorrem da necessidade de recolher toda a informação arqueológica que será destruída pela construção de um muro de suporte de terras. De facto, a lei obriga a que o promotor da obra, neste caso o município de Loures, assegure a salvaguarda da informação que vai ser eliminada, a qual contribuirá para o enriquecimento da história local.

O Largo do Espírito Santo de Bucelas possui um elevado potencial arqueológico, não só porque são vários os indícios que nos apontam para uma ocupação romana, mas também porque alguns documentos atestam a utilização deste mesmo espaço no período medieval, não esquecendo, claro está, uma evidência incontestável, a presença da belíssima Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora da Purificação. Saliento que neste espaço que corresponde ao referido Largo existiu a Capela do Espírito Santo, a qual tinha anexas as casas do Hospital Medieval, conjunto patrimonial já abordado numa outra destas minhas crónicas.

Não é estranho encontrar, nas proximidades de igrejas e capelas, cemitérios, pois durante muito tempo, nomeadamente entre a Idade Média e o século XVIII, os mortos eram sepultados no interior das igrejas, capelas, mosteiros e conventos, no solo, ou em túmulos de pedra, dependendo da sua situação social. A própria palavra cemitério vem do grego koimetérion, que significa “dormitório” e do latim coemeteriu que por sua vez designava o lugar onde se dorme, isto porque para um cristão a morte não era definitiva, mas um percurso penitencial que teria de ser realizado a fim de se atingir a imortalidade da alma e do corpo, na Cidade Celeste.

Perfeitamente em sintonia com o dogma católico, esta ideia de caminho linear, que compreende um percurso com início e fim, aplicava-se não só ao indivíduo, como à história humana e a todo o Universo. Neste contexto, a morte era entendida como um sono, do qual se acordaria para se ser encaminhado para junto de Deus. Ora, importava que os corpos adormecidos estivessem o mais protegidos possível, sob a proteção dos santos, o que determinou que os enterramentos fossem efetuados no interior e na proximidade dos espaços religiosos. Não podemos esquecer que o solo sagrado abrangia não só o interior dos templos, mas também as zonas circundantes, os adros. Assim, de acordo com o maior ou menor estatuto social, os fiéis eram enterrados dentro ou fora das igrejas.

Ainda no século XVIII surge a proibição dos enterramentos em templos, mas será somente no século seguinte, após a lei de 1835 - Decreto-Lei nº 442205 publicado a 21 de setembro no Diário do Governo por iniciativa de Rodrigo da Fonseca Magalhães - que se começaram a construir os cemitérios civis afastados da malha urbana, mudança de atitude das autoridades públicas que resulta das tendências higienistas do Iluminismo. A preocupação com a saúde pública defendia que a localização ideal dos cemitérios era fora do espaço urbano, em terrenos arejados, longe de fontes de água para evitar a contaminação, e onde os ventos não soprassem na direção das casas.

Assiste-se assim a uma importante alteração do espaço cemiterial. Se durante as épocas medieval e moderna o cemitério estava inserido na malha urbana como espaço público e multifuncional, onde vivos e mortos “conviviam” no mesmo sítio, no século XIX a morte é afastada para a periferia dos lugares, vilas ou cidades. Portanto, até ao século XIX, no âmago do espaço urbano, na cintura do espaço sagrado, era onde se realizava a inumação dos restos mortais. As igrejas e adros eram locais importantes não só de manifestações religiosas, mas de festas, feiras e outro tipo de sociabilidades. A criação de cemitérios públicos veio separar estes dois mundos, marcando uma distinção entre o local dos mortos e a cidade dos vivos.

Todavia o processo de secularização da morte não foi isento de descontentamento e revoltas. A publicação da lei de 1835 não significou que em todo o país as novas determinações fossem de facto respeitadas. Poucos eram os cemitérios existentes, facto em parte justificável pela difícil situação económica que se vivia na época. Também a igreja resistiu de certo modo a esta diminuição da sua área de influência, a gestão do espaço da morte, das sepulturas, que eram uma fonte de rendimento. O enterramento dentro e nas proximidades das igrejas estava fortemente enraizado no clero e nos populares, e principalmente no Norte e Interior do país assistiu-se a tumultos e revoltas locais, nomeadamente uma que ficou célebre, a “Revolta da Maria da Fonte”.

Contrariamente, tanto em Lisboa como nas principais cidades do país os novos cemitérios foram aceites, principalmente pelas classes dominantes, que encararam este novo espaço como um sítio privilegiado de representação do seu estatuto social e económico. Os jazigos, a heráldica tumular, composta por epitáfios fúnebres, estatuária alegórica e ornamentos de motivos variados, assumem-se desde então como um desejo de afirmação e perpetuação do nome de família. Se no período medieval e moderno o que predominara era o anonimato - os mortos não ostentavam identificação, com exceção de figuras importantes - a partir de agora, a individualização do morto e a imortalização do nome passavam a ser uma realidade.

As escavações arqueológicas de emergência em Bucelas são uma “janela” para uma vasta zona de sepultações, ou seja, um meio que permite investigar uma pequena parte do antigo cemitério desta povoação. De acordo com os registos paroquiais de Bucelas existentes na Torre do Tombo, pelo menos desde 1565 que se enterravam pessoas nesta área. Desse mesmo ano há um registo que nos informa o seguinte: “Aos 14 de Fevereiro de 1565 faleceu o Reverendo Padre Gabriel Correia, Prior que foi desta Igreja muitos anos e no dia seguinte foi sepultado na Capela Mor desta Igreja (…) Aos 6 de Março de 1565 faleceu Jerónimo escravo de Dom Henrique de Noronha e no dia seguinte foi sepultado no Adro desta Igreja.” É evidente a diferenciação social no ato da sepultação, testemunhadas também muitas no registo arqueológico.

Os dados da escavação arqueológica, os documentos, a análise do espaço urbano, as informações orais, fotografias antigas, tudo isso aportará elementos para novas interpretações, novas explicações, contributos inestimáveis para a história e naturalmente para o património. Só conhecendo podemos agir, nos locais e com as pessoas, de modo crítico e construtivo, conjugando memória e modernização

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