Paisagens e Patrimónios
A Quinta das Carrafouchas
3 de dezembro de 2016
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Na crónica anterior apresentei a Quinta das Carrafouchas como um dos muitos exemplos de quintas de produção e recreio barrocas construídas no séc. XVIII na região envolvente de Lisboa. Estes lugares de privilégio permitiam aos seus proprietários retirarem-se para um ambiente mais bucólico e de certo isolamento, sem se afastarem demasiado da grande cidade e da corte. Como já foi mencionado anteriormente, sabemos que a Casa das Carrafouchas foi adquirida em 1875, ao mesmo tempo que a Quinta do Correio-Mor, por Quirino Luís António Louza. Mais tarde, em 1879, a propriedade foi comprada ao Marquês de Valada por Joaquim Franco Cannas, mantendo-se na sua família até ao presente.
Quem observa a fachada do edifício principal da quinta poderá constatar que existem dois acessos: a porta da capela e o portão armoriado que dá acesso ao pátio. Vamos então “entrar” neste lugar extraordinário, chamando a atenção para alguns aspetos da riqueza arquitetónica e histórica desta quinta barroca.
Cruzando o portal entramos num pátio, espaço central do conjunto principal, pelo qual se acede tanto ao solar, bem como a outras dependências de apoio, visualizando-se uma bela composição de volumes correspondentes aos telhados. Como elemento dominante está a varanda, decorada com três monumentais painéis de azulejos do séc. XVIII, nos quais estão representadas cenas de caça, com cavaleiros e montadas perseguindo o touro, o cervo e o javali. O pavimento é constituído por um empedrado a preto e branco (basalto e calcário) formando um padrão geométrico. Uma fonte refresca o conjunto do pátio.
Seguindo como sugestão essa fonte e a água que dela jorra, esta quinta, à semelhança de muitas outras edificadas na mesma época, apresenta uma estrutura que é determinada pela articulação dos vários elementos que constituem o sistema hidráulico. Tanto o traçado dos caminhos como as zonas de recreio acompanham este sistema, em harmonia com a topografia do terreno, criando assim um lugar com características próprias, em simbiose entre o natural e o construído, lugar esse, como sempre, particularmente vocacionado para a contemplação e, em geral, para a privacidade de que as pessoas de condição superior podiam usufruir. Em todos os tempos, provavelmente, essa privacidade foi apanágio das elites…supremo luxo.
O abastecimento da quinta é feito através de uma mina, essencial para a rega, mas também para alimentar os vários tanques que embelezam os jardins. Com efeito, atravessando o pátio central e transposta a arcada, é possível aceder ao principal jardim através de uma escadaria semicircular em pedra. Esse jardim formal exibe uma planta em semicírculo e canteiros em forma de “gomos de laranja”, delimitados por buxo talhado, alegrando o seu interior roseiras e evónimos. Este jardim é contido visualmente por uma sebe de cupressos, que permitem o acesso à área agrícola da quinta através de duas aberturas em arco.
Existe ainda um outro pequeno jardim, quase secreto, junto à fachada posterior da capela e corpo leste da casa principal. Apresenta uma planta geral retangular, incluindo um canteiro de forma retangular e três circulares de buxo aparado com roseiras no interior. Todo ele é delimitado por um muro alto, mas provido de aberturas que permitem visibilidade sobre a vinha. Mais uma vez, uma zona “contida”, delimitada, mas com vistas para o exterior, ainda que neste caso o “exterior” seja a vinha da propriedade. Pode-se aceder ao referido jardim pela casa, ou através da quinta.
A zona agrícola está estruturada em quatro parcelas, divididas por percursos que demarcam e rodeiam as diferentes áreas de produção e, simultaneamente, unem os elementos recreativos e ornamentais que constituem o espaço. Veja-se como uma quinta destas era uma espécie de microcosmo organizado, onde o espaço era submetido à ordem humana, por forma a prover harmonia, beleza e produtividade dos terrenos, riqueza sobre a qual tudo assentava…
Assim, podemos apreciar um chafariz com templete, decorado com azulejos alusivos a Santo António e ao Milagre das Bilhas, configurando uma zona de repouso e contemplação. O mesmo acontece na zona do grande tanque em meia lua com a sua casa de fresco (zona onde nos tempos de canícula se podia fruir uma mais agradável temperatura), com magníficos painéis de azulejos que ornamentam nichos representando as Quatro Estações. Este tema, mil vezes repetido ao longo da história da arte, e muito bucólico, alegra frequentemente os salões e os terraços dos palácios desta época, não sendo pois de estranhar que também fosse escolhido para embelezar o jardim da quinta das Carrafouchas.
Voltando ainda à fachada principal, uma outra possibilidade de entrar no espaço privado é através da capela, lugar simbólico de ligação ao sagrado, tanto para os habitantes da casa como, eventualmente, para a população das redondezas. Este templo é dedicado a Nossa Senhora do Monte do Carmo e deslumbrante no seu interior, onde se encontram talhas douradas, embutidos de mármore polícromos (como por exemplo na Igreja Matriz de Loures), frescos de cor vermelha e dourados, além de cartelas, bem como de painéis de azulejos azuis e brancos que revestem as paredes laterais com representações da vida da Virgem.
Assim, a Quinta das Carrafouchas é um dos muitos elementos patrimoniais históricos que ainda subsistem no concelho de Loures, contribuindo para a sua valorização. Muito embora seja do foro privado, o conhecimento da sua existência e manutenção apraz-nos a todos, porque marca a paisagem com um selo de “autenticidade”, de antiguidade, de exceção, que de algum modo compensa o facto de, em muitos espaços do concelho, e apesar dos repetidos esforços da autarquia, nem sempre se ter conseguido a harmonia da paisagem envolvente que todos tanto desejaríamos. E que é um dos elementos de bem-estar e de qualidade de vida, a que todos têm direito. É esse o sentido da consciência patrimonial: público ou privado, tudo aquilo que tem valor e empresta à paisagem significado, é, naturalmente, um elemento de enriquecimento de todos nós.