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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A presença dos Avieiros em Sacavém

8 de outubro de 2023
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Como é do conhecimento dos nossos leitores no passado mês de setembro foi inaugurado o Percurso Ribeirinho junto ao Tejo, projeto há muito desejado pela população de Loures e que une um percurso pedonal que começa em Vila Franca de Xira, atravessa Loures e continua por Lisboa. Na verdade, o novo passadiço em madeira, sobre o sapal da margem direita do Tejo veio proporcionar uma maior ligação à zona ribeirinha e, consequentemente, promover a sua fruição. Efetivamente, a valorização desta margem do Tejo, com a implementação deste e de outros projetos visa contrariar um movimento de apropriação desta zona que desde os finais do século XIX foi sendo ocupada por várias fábricas, à medida que a expansão da malha industrial de Lisboa se estendeu aos concelhos limítrofes. No nosso caso, as industrias foram-se fixando sobretudo ao longo da via-férrea e da Estrada Nacional 10, eixos essenciais para o seu desenvolvimento.
Em crónicas anteriores já tive a oportunidade de salientar a relevância da navegabilidade do rio Tejo e dos seus afluentes, nomeadamente do rio Trancão tendo mencionando a existência de vários cais fluviais, muitos deles palafiticos, como nos atestam algumas fotografias e postais antigos de Sacavém ou mesmo referências documentais, como por exemplo as Memórias Paroquiais do século XVIII. Ainda nos inícios do século XX, toda uma comunidade de pescadores, assim como transportadores de mercadorias e de pessoas cruzavam estas águas, num frenesim que hoje nos custa até imaginar. Gradualmente, como é do conhecimento geral, o transporte fluvial foi sendo substituído pelo ferroviário e mais recentemente pelo automóvel, os barcos praticamente desapareceram…
Assim, todo esse fervilhar de vida sumiu-se à medida que se transformaram os modos de viver e por isso a ligação ao rio foi ficando cada vez mais ténue, tornando-se numa espécie de “paisagem” de fundo que por vezes se vislumbra, mas a uma certa distância. A expansão urbana da primeira metade do século XX, associada à necessidade de mão-de-obra que as fábricas exigiram implicaram por sua vez a proliferação de bairros, mas estas novas urbanizações não privilegiaram a proximidade da orla ribeirinha…
As grandes mudanças que atrás aludi também trouxeram o desaparecimento dos cais palafiticos de Sacavém, incluindo aqueles que estavam associados, desde meados do século XIX, às comunidades Aveiras que ao longo do estuário do Tejo, desde Lisboa a Santarém viviam da pesca do sável, fazendo das bateiras a suas casas. Sabemos que em Sacavém existiram dois assentamentos de duas ou três unidades habitacionais junto ao Trancão relacionadas com estas famílias Avieiras que, entretanto, desapareceram. Mesmo em Lisboa, relatos asseguram a presença de comunidades Avieiras com as barracas à borda d’água, assentes sobre estacas de madeira, junto ao Poço do Bispo. Estas famílias de pescadores eram provenientes da Praia de Vieira de Leiria, daí a designação de Avieiros, região que abandonavam nos meses onde a pesca no mar era impraticável.
Portanto, existiram ao longo das margens do Tejo muitos outros núcleos destas famílias que procuravam o seu sustento durante os meses de inverno nestas paragens. Certos leitores já devem conhecer alguns destes cais e estruturas habitacionais palafíticas, como Porto das Mulheres em Mouchão de São Brás (Chamusca), Azinhaga (Golegã), Caneiras, Barreiras da Bica e Alfarge (Santarém), Patacão de Cima e Patacão de Baixo (Alpiarça), Palhota (Cartaxo), Lezirão (Azambuja), Escaroupim (Salvaterra de Magos), Vale de Tijolos (Almeirim), Cucos, Faias, Isabelinhas, Oliveirinhas, Porto de Sabugueiro, Alhandra e Póvoa de Santa Iria (Vila Franca de Xira). Nesta última, na Póvoa de Santa Iria, mesmo aqui ao lado, podemos visitar o cais palafítico e também a reconstituição de uma casa de madeira que evoca precisamente a vivência dos Avieiros neste território.
A lista de núcleos atrás citada não é exaustiva, os investigadores documentam pelos menos a presença de 140 aldeias Avieiras ao longo do tempo, com inicio no Patacão de Cima e nas Caneiras. Convém destacar que o seu estabelecimento foi um processo lento, o qual ocorreu de forma progressiva ao longo de 100 anos. Com efeito, assistiu-se à evolução dos assentamentos urbanos de montante para jusante, em ambas as margens do rio Tejo. Porém, na década de 70 do século XX principiou um período de estagnação e mesmo de declínio. Atualmente, as transformações do modo de vida destas comunidades levaram ao abandono da pesca como único meio de sobrevivência. Muitas destas aldeias palafíticas, inicialmente constituídas por estruturas muito perenes, utilizando materiais orgânicos que podiam encontrar nas margens dos cursos de água, como as canas, foram sendo eliminadas e substituídas por bairros de pescadores com casas em alvenaria. No entanto, alguns núcleos perduram e várias entidades procuram salvaguardar os vestígios desta cultura, não só conservando alguns dos seus aspetos materiais (cais, baterias, casas de madeira); mas, também, o saber fazer passado de geração em geração tão presente nas suas artes de pesca. Outro especto que hoje é particularmente apreciado é a sua gastronomia fundada no aproveitamento dos recursos naturais que estes pescadores tão bem conheciam, como as plantas ribeirinhas e o peixe.
Estas comunidades de Avieiros vivam essencialmente nas suas bateiras, aliás estas embarcações eram a base da sua atividade e sobrevivência. As bateiras eram o seu instrumento de trabalho, o meio de transporte, a casa, a cozinha, o berço e até leito de morte. Normalmente era a mulher que assumia os remos, enquanto o homem lançava as redes. Tecnicamente uma bateira é uma embarcação de duas proas, com fundo chato e de forma lanceolada, costado de tábuas lisas, movida a remos e/ou à vara, e por vezes à vela. O seu comprimento pode variar entre os 4 e os 14 metros e podem assumir designações distintas de acordo com os locais de sua origem. Por exemplo, na zona de Azambuja até Chamusca as embarcações eram conhecidas como bateiras, por sua vez em Vila Franca de Xira eram nomeados por saveiros.
As aldeias Avieiras com os seus cais palafiticos que subsistem são preciosas por serem muito raras, tanto aqui em Portugal como na Europa. Elas são exemplares da arquitetura vernacular palafítica, apenas com paralelo na Noruega (na vila piscatória de Nusfjord ou no bairro palafítico de Bakklandet, em Trondheim). As embarcações, as ditas bateiras, são pintadas de cores vivas, onde o uso da cor funciona como uma forma de individualização. As vidas destas comunidades Avieiras foi sempre muito dura, como tão bem retratou Alves Redol no seu romance. É incontestável que estamos perante um património cultural que devemos conhecer, valorizar e salvaguardar.

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