Anuncie connosco
Pub
Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A memória dos barcos do rio Trancão

4 de agosto de 2020
Partilhar

Quando hoje observamos a várzea de Loures damos por nós a pensar quanto é estranho o facto de que ainda há pouco tempo o rio Trancão e os alguns dos seus principais afluentes, como a ribeira de Loures ou a ribeira da Póvoa, eram cursos de água que fervilhavam de atividade humana. Com efeito, embarcações de vários tipos atracavam nos portos que bordejavam aquela várzea, carregando para a grande cidade os produtos agrícolas e sal produzidos na região. Mas, as pessoas também preferiam muitas vezes este meio de transporte, por ser mais cómodo e rápido relativamente às estradas reais, frequentemente em mau estado. Além dos barcos que transportavam pessoas e bens outros havia, os barcos de pesca, que asseguravam o sustento de algumas comunidades de pescadores, nomeadamente de Unhos e de Frielas.

A povoação de Sacavém era um porto importante - como já referi numa crónica anterior - onde vários cais garantiam a ancoragem de muitos tipos de embarcações. Um dos barcos mais referidos na documentação são os batéis, mas outros tipos de embarcações frequentavam estas paragens, como as bateiras ou as faluas. No século XVI, em 1552, o conhecido cronista João Brandão de Buarcos, na sua obra “Grandeza e Abastança de Lisboa” menciona a existência de 20 embarcações que, vindas do Tojal, Unhos e Sacavém, aportavam diariamente à capital.

Ainda no século XVIII, em 1760, as Memórias Paroquiais de Santo Antão do Tojal mencionam o Rio de Sacavém - ou seja, o rio Trancão - como um braço do rio Tejo que entrando em Sacavém - várzea adentro - terminaria em Santo Antão, sendo designado como Esteiro. Este “braço” era navegável com a maré-cheia e era utilizado pelas maiores bateiras, batelões e “barcos grandes”. Aliás, para assegurar a navegabilidade destas embarcações de alguma envergadura, D. João V mandou alargar o referido braço, o então chamado “Esteio da Princesa”. Foi por este canal que vieram de Lisboa as estátuas e os sinos destinados à “Real Obra de Mafra”, tendo sido desembarcadas no porto fluvial de Santo Antão do Tojal, e depois seguindo para o seu destino em carros de bois pela estrada real que ligava esta povoação a Fanhões, Montachique, e finalmente Mafra.

As mesmas Memórias Paroquiais mencionam a água salgada que subia pelo Tejo pela influência das marés, o que permitia a exploração de salinas. Um dos locais com maior concentração deste tipo de estruturas era a povoação de Marnotas, localizada na várzea, entre Loures e Santo Antão do Tojal. As marinhas que não eram usadas para produzir sal eram aproveitadas, no tempo da Quaresma, para a criação de peixes, como enguias, fataças e barbos.

O Terramoto de 1755 veio acelerar o assoreamento da várzea e dos seus cursos de água. No início do século XIX são vários os pedidos endereçados às autoridades pelos habitantes dos vários aglomerados que bordejavam a bacia fluvial do Trancão no sentido de se realizarem obras para salvaguardar a navegabilidade do rio. Mas, o processo foi-se tornando irreversível, e, pouco a pouco, os barcos foram desaparecendo…

O Pe. Álvaro Proença, pároco de Loures, escreveu, em 1940, na sua obra “Subsídios para a História do Concelho de Loures”, que a madeira utilizada para a substituição do pavimento da igreja Matriz, entre 1820 e 1822, terá desembarcado na Póvoa de Santo Adrião e daí sido transportada para Loures em carros puxados por animais. Ou seja, ainda havia então um porto nestas bandas, resquício de uma longuíssima história de navegabilidade do Trancão, com toda a movimentação decorrente dessa mesma navegabilidade. Uma movimentação, de homens e de barcos, que criava uma ambiência sonora e visual, todo um mundo de falares e de velames, de esforço e de empenho humanos, que constituía uma paisagem hoje já só alcançável pela nossa imaginação estética. Mas essa ausência causa-nos, retrospetivamente, uma certa nostalgia… e por momentos julgamos visionar todo um mundo que já passou.

Última edição

Opinião