Paisagens e Patrimónios
A importância da paisagem
7 de maio de 2016
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Quando pensamos em “paisagem” vem-nos logo à ideia a imagem de uma (mais ou menos bela, ou atraente, e harmoniosa) “vista”, ou seja, um panorama que observamos à distância a partir de um ponto fixo ou, então, que se vai desenrolando ante os nossos olhos (e outros sentidos) ao longo de um percurso.
A palavra vem do francês pay¬sage, que por sua vez deriva de pays, no sentido de região habitada e vivida. Mas, em geral, tradicionalmente, aqueles que cultivavam a terra e viviam no mundo rural não vivenciavam, nem encaravam, o seu ambien¬te como paisagem, pois a ideia inerente a esse conceito pressu¬põe um observador distanciado, um proprietário que não trabalha directamente o solo, ou um visi¬tante.
Isto é, aquele que labora a terra e lhe dá forma, sentindo-se um elemento entre outros do meio, esse, o camponês, não pode ser, ao mesmo tempo, um elemento externo que observa, que con¬templa, de longe, um território. A sua mentalidade, a sua cultura, está profundamente imbrincada no mundo em que mergulha, com que se identifica, e o qual com as suas mãos e alfaias transforma.
Em inglês, o termo para paisa¬gem é, como se sabe, landscape, e, originariamente, referia-se a um terreno de actividade agrária e a que esta emprestava formas diversas, consoante as culturas. Porém, a palavra entrou na lin¬guagem da pintura, sobretudo a partir do séc. XVII, como nos explica o antropólogo britânico Tim Ingold, muito ligada ao sen¬tido de visão tipicamente ociden¬tal, sentido esse que se acentuou com a modernidade e a explora¬ção científica do mundo, na qual o sentido da visão e a tecnolo¬gia óptica são predominantes. Conhecer passa a ser observar e descrever com detalhe a reali¬dade que nos cerca, o teatro do mundo, atitude que se nota tanto nas observações científicas de Galileu, como, por exemplo, nas obras de arte, que levam à ori¬gem da ópera, com Monteverdi. Esta última é uma representação teatral nova, que traz o mundo para dentro de uma cena, desti¬nada à fruição contemplativa, tal como o óculo astronómico traz para o olhar do sábio a verdade do universo.
Na verdade, de início, por exem¬plo na Idade Média, as paisa¬gens, ou seja, as representações de campos ou de cidades vis¬tas ao longe, ocorriam de forma muito secundária, em segundo plano, no conjunto da composi¬ção figurativa. Mesmo nas ima¬gens do Paraíso, ou Éden, o que hoje chamaríamos “paisagens”, apareciam predominantemente de forma convencional e ideali¬zada, para ilustrar o tema bíblico.
Mas, com a Renascença, e depois com o racionalismo do séc. XVII em diante, dá-se a vinda, para primeiro plano, da imagem da vida quotidiana, do retrato de grandes persona¬gens (ou seja, a pintura tende a aproximar-se da vida corrente) e aparece também, cada vez mais, em relação com isso, a representação de territórios, de vastos panoramas, nos quais a actividade comum dos homens se desenrolava.
Entretanto, a descoberta da pers¬pectiva tinha permitido transfor¬mar, de algum modo, o quadro a duas dimensões numa ima¬gem que se assemelhava ao que podia ser visto de uma janela, a três dimensões. A paisagem ganhava, pouco a pouco, um papel de actor principal da obra de arte figurativa, substituindo o seu carácter essencialmente secundário ou meramente deco¬rativo anterior. De facto, a pers¬pectiva era uma técnica que, com as suas “linhas de fuga”, permitia simular a visão que temos de um panorama quando o observamos, dando a ilusão de realidade, com os seus vários planos, desde o próximo até ao mais distante.
Até que a paisagem se transfor¬ma mesmo num género da pintu¬ra, que procura dar, por exemplo na segunda metade do séc. XIX e princípios do XX, a luz, a cor, a textura dos mais diferentes ambientes terrestres. Quando pensamos em “paisagens” é tudo isso que nos vem à memória.
Paisagem liga-se a contempla¬ção, distanciada, e a viagem, quer dizer, ao turismo, ao prazer do despaisamento e da fruição do diferente, do exótico, do sublime mesmo, prazer esse que, de iní¬cio, era privilégio das elites aris-tocráticas e depois burguesas. Mas, com o desenvolvimento dos transportes tendeu, cada vez mais, a abarcar massas traba¬lhadoras que, entretanto, no séc. XIX, se tinham deslocado dos campos para as cidades, com a Revolução Industrial. O barco a vapor e o comboio são respon-sáveis, para além do enorme desenvolvimento do comércio, da criação de polos de atracção e de fruição novos, ao ar livre, como sejam parques naturais e até a própria moda das praias e da prática balnear.
Portanto, paisagem liga-se à ideia de industrialização, de capacidade técnica de constru¬ção em larga escala de reali¬dades inéditas, como sejam as cidades industriais do séc. XIX, onde imperava a ideia optimista de progresso, que entrou em crise no séc. XX com os gran¬des traumas que constituíram as guerras e os morticínios nunca antes vistos a tal escala. Nesse sentido, a fotografia e depois o cinema e a TV viriam cada vez mais a multiplicar as imagens e seus consumos e, entre elas, toda uma imaginária paisagística completamente nova, que hoje prolifera de forma alucinante com a passagem do analógico ao digi¬tal e com a internet.
Ou seja, com a generalização da vida passada em frente de ecrãs, seja de computador, de televisão ou de telemóvel (tornado uma verdadeira prótese do sujeito contemporâneo) e com a prolife¬ração da imagem, é a própria pai¬sagem contemporânea que sofre uma profunda transformação.
Nós queremos consumir pai¬sagens, ver, visitar, fotografar, registar, publicar, transmitir expe¬riências a outrem, nomeadamen¬te inseridos em paisagens, den¬tro do que poderíamos chamar uma tendência para a exibição que é notória, por exemplo, nas redes sociais. É um sinal de estatuto uma pessoa, ou grupo, publicar a sua imagem em frente de uma paisagem prestigiante, longínqua, exótica, fascinante.
Assim, a importância que damos hoje à noção de paisagem tem muito a ver com o facto dela implicar a totalidade da nossa vivência e a própria imagem que queremos dar de nós mesmos, da nossa identidade, construída sobre um fundo de paisagens surpreendentes.
Este colunista escreve em concordância com o antigo acordo ortográfico