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Opinião
Florbela Estevão – Arqueóloga e Museóloga
Florbela Estevão
Arqueóloga e Museóloga

Paisagens e Patrimónios

A Escadaria do Palácio de Santo Antão do Tojal

5 de novembro de 2018
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Volto hoje a Santo Antão do Tojal para relembrar o conjunto patrimonial que se desenvolve em torno da famosa praça monumental daquela povoação, uma joia da arquitetura barroca portuguesa. Resultou tal conjunto do desejo do primeiro Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, de transformar, entre 1728 e 1732, uma propriedade rural ali existente num local aparatoso que simbolizasse o seu estatuto social elevado.

Com esse intento contratou António Canevari, famoso arquiteto italiano, o qual elaborou um projeto arquitetónico complexo que englobou, não só o palácio residencial, mas também uma fonte-palácio pública, elemento de destaque na mencionada praça monumental, assim como um aqueduto, este último obra indispensável para alimentar não só a fonte, mas para fornecer água à propriedade do patriarca e à população do lugar.

Não vou incidir sobre este complexo na sua generalidade, uma vez que já foi tema de uma crónica anterior (embora o que então foi escrito esteja longe de esgotar o assunto), mas escolhi “olhar” com maior particularidade para o interior do palácio, mais concretamente para a sua extraordinária escadaria nobre.

Com efeito, quanto entramos do edifício, outrora, como referido acima, espaço residencial de D. Tomás de Almeida, a escadaria de aparato é um dos elementos que nos cativa a atenção. Para ascender ao piso nobre, onde várias salas deslumbram pelos seus painéis de azulejos, o visitante tem que subir por essa escadaria, na qual se destacam de imediato as imponentes figuras de convite, em azulejo, tão características do barroco, ricamente vestidas e em tamanho real, que nos convidam a visitar os salões do patriarca.

Uma das características da linguagem arquitetónica barroca reside na transformação das escadarias de acesso, que deixam de ser predominantemente “funcionais”, ou seja, servirem sobretudo para vencer o desnível entre pisos, e passam a ter uma acentuada dimensão artística, cénica, de aparato, que visa acentuar o estatuto social, político e económico do seu proprietário.

O modo como a escadaria é concebida e o seu papel no todo do edifício revelam-se importantes, contribuindo para tornar mais evidente o papel preponderante daquele que recebe quem o visita.

De facto, quanto mais aparatosa for a escadaria, maior será o estatuto social da casa nobre e do anfitrião da mesma. Assim, o visitante, que entra nessa casa e fica a aguardar a subida sentado num dos bancos do vestíbulo situado junto à base da escadaria, sente logo que se encontra num espaço de limiar que funciona como uma autêntica sala de receção, inculcando uma primeira impressão do estatuto social do visitado.

Esses bancos do vestíbulo são pois, evidentemente, um ponto de paragem para o visitante, momento de uma encenação que toda a visita a casa alheia, nomeadamente nobre, sempre envolve, e onde se jogam os papéis sociais de cada um dos intervenientes.

Se na Itália, no século XVII, as escadarias de aparato dos palácios se caracterizavam por serem majestosas, privilegiando-se o uso da escultura de vulto e a aplicação de rochas ornamentais nas paredes e nos pavimentos, em Portugal aplicaram-se, nesses espaços cénicos, outros tipos de artes decorativas, nomeadamente os azulejos, enriquecidos com temas variados, providos de cor e de movimento.

No caso do Palácio de Santo Antão, António Canevari utilizou a linguagem italiana, projetando uma escadaria antecedida por um vestíbulo de planta longitudinal, com bancos de pedra sob arcos de volta perfeita, destinados, como acentuei, aos visitantes que aí deveriam aguardar antes de serem recebidos pelo proprietário.

Ainda na década de 1740, e segundo alguns historiadores, entre eles José Meco, afirmam que D. Tomás de Almeida terá suavizado a fria escadaria italiana, edificada alguns anos antes, ao decidir incorporar painéis de azulejo, transformando-a numa escadaria de aparato com mais claras características portuguesas. Foram então aplicados esses painéis de azulejo decorados por temas que os historiadores identificam como balaustradas de jardim, parques com jarrões e festões, animais exóticos e figuras de convite, conseguindo deste modo um efeito cénico erudito, onde o espaço é ampliado por artifícios artísticos, isto é, pela representação de imagens que aludem a uma realidade exterior.

No palácio que estou a descrever, ao subir a escadaria, logo em primeiro lugar surge a figura de um alabardeiro em traje “agaloado a ouro”, recebendo o visitante. Mais acima, outras duas figuras de alabardeiros, todos eles exibindo uma indumentária magnificente, renovam o convite de entrada com o gesto e o olhar, “acompanhando” o visitante no percurso até ao piso nobre. Era toda uma etiqueta, um protocolo, que deveria ser respeitado, e estava assim representado nas próprias figuras inscritas nas paredes de azulejo.

Na verdade, ainda hoje as figuras de convite assombram aqueles que sobem e descem estas escadas, como se fossem pessoas verdadeiras que ali se encontrassem à espera.

Por outro lado, os animais dos azulejos parece que nos interpelam, presos ou semi-escondidos entre os balaústres… e, depois, até uma janela incluída no espaço das escadas permite a quem sobe parar, e prolongar o olhar para o jardim existente no exterior do palácio, como se a escada, com todas as plantas e flores representadas nos seus azulejos, refletisse a realidade lá de fora, criando um interessante jogo, tipicamente barroco, entre espaços e motivos, isto é, um movimento, um dinamismo, tão próprio da época.

Em suma: subir ou descer estas escadarias é, como sempre acontece nos palácios barrocos, toda uma experiência encantatória…

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